Quando um software nos ensina que não somos binários
Confesso que fiquei um tanto quanto surpreso ao saber do que se tratava “Ela”, filme estrelado por Joaquin Phoenix e dirigido por Spike Jonze. O enredo do filme não é exatamente uma novidade no mundo do cinema e da literatura, pois não é difícil encontrar obras de ficção científica que exploram o envolvimento afetivo entre humanos e máquinas com inteligência artificial, mas surpreendeu mesmo assim.
A novidade em “Ela” talvez fique por conta de se tratar de um relacionamento amoroso entre homens e softwares. Theodore, o personagem de Phoenix, adquire um novo sistema operacional cuja grande propaganda é a capacidade de raciocínio e de aprendizagem oferecida por um avançado método de inteligência artificial. A fragilidade afetiva do protagonista, que recém havia se separado da esposa, somada à dificuldade de se relacionar com pessoas de verdade foram as chaves para o início de um relacionamento com o SO, magistralmente dublado por Scarlett Johansson.
Ambientado de maneira muito competente, com ótimos cenários que falam bastante sobre as emoções do personagem, o filme impressiona pela originalidade do roteiro e também pela construção do ambiente, o que nos leva a crer que o futuro de “Ela” não é tão diferente daquilo que pode vir a ser o nosso futuro. Esse ar de “realismo”, afinal não há androides caminhando sobre a Terra como em “Inteligência Artificial”, dá um toque especial à película.
Mas o que mais me chamou a atenção no filme foi uma fala proferida por Samantha, nome do sistema operacional instalado no computador de Theodore, quando esta revela ao amante que estava apaixonada por mais 641 outras “pessoas” (“pessoas” porque na cena não fica claro se são pessoas de fato ou outros sistemas operacionais com os quais Samantha passou a ter contato).
Ao contar tal segredo para o personagem de Phoenix, Samantha toca em um ponto bastante delicado de um relacionamento afetivo: a ideia de que podemos amar apenas uma pessoa de cada vez. Ao defender seu ponto de vista, o sistema operacional aponta que “o coração não é como uma caixa que é preenchida; ele se expande em tamanho quanto mais você ama”.
A perspectiva pode soar incômoda e até absurda, especialmente em uma sociedade dominada pela visão do amor romântico e de que todos teríamos alguém especial nos aguardando, que precisaríamos buscar a “nossa metade da laranja”, mas também deixa a dúvida sobre a chance de essa nova visão também ser verdadeira.
Eis aí o ponto mais interessante de “Ela” no meu ponto de vista: um sistema artificial que conta a um homem sobre a possibilidade de a afetividade humana não ser um sistema binário, onde só cabem 1 ou 0, mas sim um caixa que aumenta de tamanho conforme vai sendo preenchida, apresentando uma complexidade enorme para ser pré-determinada.
Não quero aqui fazer uma ode contra a monogamia e nem chamar de antinatural tudo que não rime com o poliamor, mas apenas apontar o quanto outras perspectivas de amor e de relacionamento se entrecruzam em uma sociedade plural e diversificada. Enfim, valeu a pena pagar o ingresso e assistir a “Ela” no cinema.