Crítica do filme A Casa do Medo – Incidente em Ghostland

Medo de voltar

por
Carlos Augusto Ferraro

11 de Outubro de 2018
Fonte da imagem: Divulgação/Paris Filmes
Tema 🌞 🌚
Tempo 🕐 7 min

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O subgênero de terror conhecido como “torture porn” — uma releitura do Grand Guignol francês devidamente pasteurizado por meio de slasher e splatters — parecia ter alcançado eu ápice e consequente declínio lá na primeira década dos anos 2000. Com diretores arrojados e que não pediam desculpas a ninguém com suas longas e angustiantes cenas de violência, filmes como O Albergue, Jogos Mortais e A Casa dos 1000 Corpos enaltecem entranhas, nudez, mutilação e sadismo.

Na trilha desses realizadores estadunidenses, surge na França um movimento que enxerga nessa visceralidade uma forma especial de transgressão cinematográfica. Batizado de New French Extremity (novo extremismo francês), o movimento estrelado por diretores como Xavier Gens, Gaspar Noé, Catherine Breillat, Claire Denis e Alexandre Aja — entre outros — passa a forçar os “horizontes” do cinema, exigindo uma blindagem psicológica cada vez mais intensa do espectador, que é exposto a temas e imagens cruas, extremas. 

Dentre os vários títulos e diretores que se destacaram no New French Extremity, os nomes de Pascal Laugier e sua obra Mártires (2008), são sem sombra de dúvida um dos mais relevantes. O diálogo sociofilosófico proposto por Laugier brinca com o niilismo, ao mesmo tempo em que propõem uma boa discussão metafísica sobre o próprio gênero “torture porn”, com seus símbolos e significados. Mesmo que envolto em controvérsia é impossível não ter uma reação emocional intensa ao assistir Mártires.

O tempo passou o New French Extremity seguiu se desenvolvendo e parecia que Pascal Laugier seria um “diretor de um filme só”. O Homem das Sombras (2012), primeira empreitada estadunidense do diretor francês, apostou em uma história ambiciosa e intrigante, mas que em nenhum momento mostrou o verdadeiro talento de Laugier, ficando aquém até mesmo de A Profecia dos Anjos (2004), seu primeiro filme.

Agora, visivelmente mais maduro, o diretor retorna com A Casa do Medo – Incidente em Ghostland e entrega um filme que volta a questionar o “torture porn”, aproveitando elementos de “home invasion” (invasores de lares como Os Estranhos e Violência Gratuita) e recheando tudo com muito terror psicológico. O filme acerta o alvo e deve agradar aos espectadores de estômagos mais resiliente.

O medo não é efêmero

Pauline (Mylène Farmer), mãe das adolescentes Beth (Emilia Jones) e Vera (Taylor Hickson), acaba de herdar a casa de sua falecida tia. A casa, digna de um episódio de “Acumuladores Compulsivos”, fica no meio do nada e está abarrotada de antiguidades, quinquilharias e, como não poderia ser diferente, bonecas sinistras.

Como era de se esperar, a mudança de um centro urbano para uma fazenda isolada parece não agradar muito a dinâmica Vera (Taylor Hickson), que vive em constante disputa com sua irmã Beth (Emilia Jones) - uma jovem que aspira ser uma escritora de terror. Na mesma noite que se mudam as três são surpreendidas por dois invasores perturbados que passam a aterrorizar as mulheres. Em tempo, a mãe, Pauline consegue se livrar e matar os dois agressores.

Dezesseis anos depois do incidente, Beth virou uma escritora de sucesso — casada e com um filho — a garota parece ter utilizado sua escrita como terapia para superar os traumas. Tudo muda quando ela precisa retornar à casa de Ghostland para ver a sua irmã que nunca se recuperou dos eventos da fatídica noite e ainda vive num pesadelo constante.

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É neste momento que a história ganha outra dimensão. O ataque no início do filme não é o fim do martírio das mulheres. Beth e sua família vivem atormentadas pelo passado, sua mãe segue presa na casa, cuidando de Vera — que por sua vez permanece sofrendo física e mentalmente os horrores da agressão.

Sem entregar muito da trama, para não estragar as reviravoltas, direi apenas que a história brinca com narrativas, clichês e o próprio gênero “torture porn”. É difícil falar mais sem estragar as surpresas do roteiro, mas a introdução de elementos sobrenaturais é muito bem amarrada a trama principal, que por sua vez faz um uso paradoxal de vários chavões para fugir do lugar-comum.

Parece estranho, mas tudo se encaixa e faz sentido sem cair na mesmice de sempre. As reviravoltas não são particularmente geniais, o espectador mais atento percebe elas vindo conforme as conexões vão emergindo, mesmo assim elas são inteligentes — muito por conta da direção de Laugier.

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Terra de fantasmas

Muito do terror extraído por Laugier deriva da ótima ambientação e do talento do elenco. A casa é o cenário perfeito para o tipo de terror proposto pelo diretor. Normalmente associado a segurança, conforto e carinho, a deturpação do conceito da casa (ou melhor, do lar) é essencial para um bom terror — especialmente para o “torture porn” e ainda mais para o “home invasion”.

Na casa de Ghostland temos essa ideia executada com muita habilidade. O diretor abusa de clichês do gênero para perverter princípios como inocência, realidade, fantasia, família… Tudo está em desordem, a decoração e a própria arquitetura criam um labirinto real e imaginário, misturando memória e percepção, passado e presente. A atmosfera é saturada, passando uma sensação de sonho (ou pesadelo) que deixam o espectador angustiado o tempo todo que está dentro da casa.

Aliada a essa ambientação temos o trabalho equilibrado dos atores. Com atuações convincentes, o elenco principal confere a dramaticidade suficiente para as cenas mais tensas sem cair na canastrice típica das produções menores do gênero.

Vale lembrar também a controvérsia envolvendo a atriz Taylor Hickson. A garota que vive uma das personagens principais, Vera, teve seu rosto desfigurado em um acidente durante as filmagens. Hickson processou os produtores quando uma porta de vidro se quebrou e os estilhaços a atingiram, mesmo tendo sido assegurada pelo próprio diretor de que não havia risco na cena. Apesar do ocorrido lamentável, fica evidente o comprometimento da atriz que entrega algumas das cenas mais impactantes da película.

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Pós-traumático

A Casa do Medo – Incidente em Ghostland não tem a mesma força que Mártires (2008), e certamente não causará o mesmo impacto. Mesmo assim, sem muito alarde, o novo projeto de Laugier cumpre seu papel entregando um bom filme de terror.

Mesmo sem apresentar o ímpeto vanguardista de trabalhos anteriores, Pascal Laugier ainda traz propostas diferentes e apresenta o verdadeiro New French Extremity, abordando temas indigestos de maneira bruta e pujante. Na realidade, Ghostland não deve se firmar como uma unanimidade mesmo entre os fãs mais ardorosos do estilo — que terão discussões ardorosas sobre sua “validade” cinematográfica —, enquanto os de estômago mais sensível sequer terão coragem de se submeter ao terror.

Depois de transformar o torture porn em arte, Pascal Lauginer apresenta o "Terror de Estresse Pós-traumático"

Todavia, A Casa do Medo – Incidente em Ghostland merece mais atenção e, guardadas indevidas comparações, figura sim entre os melhores títulos de terror do ano. Com uma abordagem pesada, Laugier propõem uma discussão interessante sobre misoginia, empoderamento feminino e perturbação de estresse pós-traumático dentro de um gênero que é erroneamente desassociado de pautas relevantes.

Fonte das imagens: Divulgação/Paris Filmes

Pesadelo no Inferno (A Casa do Medo)

O verdadeiro mal nunca morre

Diretor: Pascal Laugier
Duração: 91 min
Estreia: 11 / Oct / 2018