Crítica do filme A Garota Dinamarquesa
A beleza do amor que rompe barreiras
A transgeneridade é um assunto que vem ganhando espaço não apenas nas mais diferentes esferas midiáticas, mas também na sociedade de maneira geral.
Para quem é cisgênero, compreender como se sente e o que se passa com quem é transgênero é algo além do alcance.
O longa-metragem "A Garota Dinamarquesa" é umas das produções atuais que traz este assunto à tona e tenta mostrar o olhar de quem é trans.
Dirigido por Tom Hooper (dos premiados O Discurso do Rei e "Os Miseráveis"), é roteirizado por Lucinda Coxon com base no livro homônimo de David Ebershoff, que conta a história de uma das primeiras mulheres transgênero de que se tem conhecimento – a dinamarquesa Lili Elbe.
Em A Garota Dinamarquesa, Eddie Redmayne é Einar Wegener, um jovem e talentoso pintor que há seis anos é casado com Gerda (Alicia Vikander), uma também pintora que trabalha para conseguir emplacar uma exposição nas galerias de Copenhague, em meados da década de 1920.
Quando uma das modelos de Gerda falta a uma sessão, a pintora pede a Einar que vista as roupas femininas e pose para que ela ao menos possa iniciar a pintura. E é assim, com um gesto tão simples, que Einar deixa aflorar a personalidade de Lili, que desde a infância estava aprisionada.
Daí por diante, o longa nos conduz pela jornada de transformação de Einar em Lili, as dúvidas, as angústias, a via-sacra entre os médicos e terapeutas, até chegar à cirurgia de mudança de sexo. Lili Elbe não é a primeira mulher transgênero da história da humanidade, mas é uma das primeiras que se sabe ter passado pela cirurgia de mudança de sexo.
Aqui, cabe um adendo: é importante saber a diferença entre sexo e gênero, que muita gente confunde! Vem com a gente pra um breve glossário:
Gênero
É como a pessoa se define internamente, sua identidade, sua personalidade. É por isso que se fala em identidade de gênero e transgeneridade.
Sexo
É aqui que entra a sexualidade! Diz respeito a quem a pessoa se sente atraída sexualmente – homossexualidade quando alguém curte pessoas do mesmo sexo que ela, heterossexualidade quando se sente atraída por pessoas do outro sexo, bissexualidade quando se sente atraída pelos dois, homens e mulheres; Pansexualidade quando a pessoa se sente atraída por toda e qualquer sexo ou identidade de gênero. É por isso que se fala em orientação sexual, diferente da identidade de gênero.
Cisgênero
É a pessoa que nasce homem e se sente homem, ou nasce mulher e se sente mulher. Não importa por quem essa pessoa se sente atraída. Ela pode ser homem e gostar de homem. Nesse caso, é um cisgênero homossexual. Ou ser mulher e gostar de homem, que é o caso de quem é cisgênero heterossexual.
Transgênero
É a pessoa que não se reconhece em sua estrutura biológica. É quem, por exemplo, nasceu com o corpo de um homem, mas se sente mulher. Essa pessoa pode ou não optar por realizar uma operação de mudança de sexo. Independente de fazer isso ou não, essa pessoa é transgênero. A sexualidade também não tem nada a ver com isso. Uma mulher trans (nasceu homem, mas se identifica como mulher) pode ser heterossexual, ou seja, se sentir atraída por homens. Pode ainda, ser uma mulher trans lésbica – ou seja, nasceu homem, mas se identifica como mulher e se sente atraída sexualmente por outras mulheres.
Travesti
É a pessoa que tem um gênero, mas se veste ou se caracteriza como o outro. É mais comum encontrarmos homens que se travestem de mulheres, ou seja, travestis mulheres.
Entendeu? Não é tão complicado! É que a gente está tão acostumado com os padrões que tem dificuldade em compreender o que é diferente. Bora respeitar quem não é igual a gente? :)
Bem, mas voltando à Garota Dinamarquesa!
Em boa parte do tempo, A Garota Dinamarquesa é, na verdade, um filme sobre Gerda, não sobre Lili. Se há algo que o longa faz magistralmente é retratar o drama vivido pela esposa de Einar, sua força e seu amor pelo marido, bem como o sofrimento com a ausência dele quando Lili passa a se impor.
O roteiro ajuda, mas é a atuação de Alicia Vikander que convence. Não é à toa que a talentosa atriz suíça tenha vencido o Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante e tenha sido indicada ao Oscar na mesma categoria. A atuação de Vikander está impecável em cada momento do longa – nas cenas de choro, nas cenas de nudez, nas cenas de alegria.
Talvez por conta disso, é a jornada de Gerda que emociona o público. É claro que este não é um critério objetivo e essa é uma das coisas mais lindas do cinema e da diversidade. O que emociona cada um de nós é diferente. É provável que uma pessoa transgênero tenha se sentido muito mais envolvida pela Lili e pela sua transformação do que eu, cis.
No entanto, a atuação do Eddie Redmayne não ajudou. Fui ao cinema com uma expectativa enorme, pois o ator esteve fenomenal no papel do Stephen Hawking em A Teoria de Tudo. Mas a impressão que fica – e isso é muito particular, claro – é a de que ele talvez não tenha conseguido captar o espírito de Lili Elbe.
Lili está saindo de seu casulo, onde já não aguenta mais ficar. É natural que haja timidez e medo – se a transgeneridade ainda é um assunto tabu hoje, imagina em 1920! Mas a Lili de Redmayne parecia não querer sair. O ator claramente se esforça e há muitos momentos em que Redmayne domina muito bem a cena – especialmente na primeira metade do filme. A partir daí, no entanto, parece que a história segue num ritmo de decréscimo.
A Garota Dinamarquesa é um filme lindo, com uma belíssima fotografia, cenários bonitos e bem-feitos, figurino caprichado, uma paleta de cores muito bem pensada. Um roteiro adaptado de uma história comovente e que permanece nova, ainda que um século tenha se passado desde que a verdadeira Lili Elbe andou pelas terras de Copenhague.
É um filme bonito, que tem atores ótimos em interpretações excelentes – palmas para Vikander –, ainda que o protagonista tenha deixado um pouco a desejar. No entanto, não saí da sessão sem fôlego, e essa sensação foi compartilhada por várias das pessoas que estavam comigo no cinema.
Não gostei da forma como as últimas cenas são conduzidas. O que pareceu começar como uma obra de arte terminou com algumas sequências clichês de romances hollywoodianos. Parece que a qualidade da interpretação degringolou e o que começou produzido com calma foi terminado com pressa e sem muito cuidado.
Mas acho que o que mais incomodou foi que fui à sessão de A Garota Dinamarquesa para tentar entender como a Lili se sente, mas o que vi foi sua história sob os olhos de Gerda. Sim, a perspectiva de Lili aparece, mas não protagoniza.
Outro ponto que pode ser observado é uma certa desconexão com o contexto. Embora algumas cenas retratem isso, é de se imaginar que uma mulher transexual tenha sofrido muito com o preconceito e com a não aceitação de quem ela é por parte da sociedade, das pessoas ao seu redor. Entendo que o objetivo era retratar os conflitos internos, mas faltou um pouco mais de contextualização neste sentido.
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De qualquer forma, "A Garota Dinamarquesa" é um longa que merece ser visto pelas duas categorias técnicas nas quais foi indicado ao Oscar – Design de Produção e Figurino –, além de Ator Principal para Redmayne e Atriz Coadjuvante, pelo belo trabalho de Alicia Vikander. Mas, também, pela sensibilidade.
Não importa se você é cisgênero ou transgênero, se você simpatiza com a causa LGBTT, ou se você não entende nada de identidade de gênero ou orientação sexual. É um filme que nos ajuda a entender um pouco este tema que ainda é tão delicado.
O amor não tem forma nem gênero