Crítica do filme As Duas Irenes
Sobre família, descoberta e identidade
E se você descobrisse que tem um irmão e ele tem seu nome e sua idade? O que isso faria com a sua identidade? Foi partindo dessa dúvida e da grande quantidade de homens que têm filhos fora da família "principal" que o cineasta Fabio Meira desenvolveu a ideia do filme "As Duas Irenes".
Inspirado em um ca(u)so que é quase um tabu na família do próprio Fabio, ele decidiu construir uma história de como seria se uma jovem descobrisse que o pai tem uma segunda família em paralelo, e que, dentro dessa família, há uma outra dela mesma.
Não deu mole: escreveu o roteiro, produziu e dirigiu o filme – que teve até uns pitacos de ninguém menos do que Gabriel Garcia Marquez no roteiro. E depois de oito anos pra sair da cabeça e cair no cinema, o primeiro longa-metragem de Fabio Meira finalmente virou um premiado produto do audiovisual brasileiro, vencedor do Kikito de Ouro no Festival de Gramado em três categorias: Melhor Filme pelo Júri da Crítica, Melhor Roteiro e Melhor Ator Coadjuvante para Marco Ricca.
Com orçamento limitado e financiado principalmente por editais de Cultura, “As Duas Irenes” conquistou os festivais e a crítica, com um roteiro simples e coerente, focado em um núcleo muito bem construído, com uma boa discussão em seu plot e com um visual de encher os olhos.
Filmado quase que integralmente com a iluminação natural de uma cidadezinha histórica no interior de Goiás, o filme tem nas locações simples, porém cheias de significado e beleza, um de seus principais trunfos.
Pousadas históricas locais se tornaram as casas dos protagonistas, elementos que constroem um contexto histórico de algum tempo atrás – mas que o público não consegue situar muito qual é.
As cores usadas no filme compõem um cenário perfeito pra que a história se passe, assim como o figurino e a contraposição dos espaços urbanos simples e típicos de cidade pequena com as belezas naturais destas mesmas cidades.
Uma cachoeira até então inédita em produtos audiovisuais, um cinema de rua de uma cidade de interior, casinhas em uma rua foi coberta de cascalho especialmente para o filme – tudo contribui para que a fotografia do longa-metragem seja digna dos elogios que vem recebendo.
Toda a beleza da fotografia de “As Duas Irenes” chega quase que para embelezar uma trama que nada tem de atraente. Não no sentido de que a história não seja boa, muito pelo contrário.
Mas é que a fotografia e os aspectos visuais contribuem muito para o diretor contar esta história do jeitinho que ele queria, com um enfoque bastante específico. Um foco não no “barraco” que a Irene poderia fazer quando descobre a traição do pai à família, mas em como isso a transforma internamente
Na cabecinha da adolescente tímida, a atriz e modelo Priscila Bittencourt enfrenta seu outro eu, a bem mais ousada e inventiva Irene (Isabela Torres), ambas filhas do Tonico, interpretado por Marco Ricca.
Com um elenco entrosado e protagonistas que vão muito bem em seus papéis, apesar de bastante jovens e inclusive com cenas de nudez, o filme surpreende bastante neste que é, segundo a humilde opinião desta que vos fala, um dos pontos fracos do cinema brasileiro, a atuação que tantas vezes deixa a desejar, especialmente em dramas.
Em termos de roteiro não é diferente. A gente tem sim muitos bons dramas entre outros tantos que falham ao cativar o público. Mas, "As Duas Irenes" consegue ser quase um drama biográfico, ao costurar com sensibilidade todas as dúvidas vividas pela protagonista, considerando especialmente o contexto da fase da vida pela qual ela está passando.
Ou seja, além trama que dá origem à história, da descoberta de uma outra de si, Irene também vive as descobertas típicas da adolescência, do encontro com a sexualidade, à medida em que se relaciona cada vez menos com a família que até tão pouco tempo era constitutiva de sua identidade.
E é isso que é “As Duas Irenes”, um drama de excelente qualidade e de grande capacidade questionadora e de imposição de conflito. Você se percebe o tempo todo angustiado com a situação da(s) Irene(s), tentando entender o que ela(s) fará(ão) a seguir, incomodado com algumas das presenças e algumas das ausências dentro da linha da história.
Trata-se de um trabalho muito bem construído e de uma história comovente na medida, engraçada também na medida, e, esperamos que, bem reconhecida dentro do cinema nacional. Recomendadíssimo!