Crítica do filme Beasts of no Nation
Sol, por que você ainda está brilhando?
Há uma verdade sobre a humanidade que o cinema não cansa de retratar: o quando situações de crueldade são capazes de nos transformar de um jeito sem volta. Beasts of no Nation trata justamente dessa metamorfose: entre a inocência de uma criança e estado de crueldade a que chegam os seres humanos quando submetidos a uma situação de violência e guerra.
O longa mostra a guerra sob a perspectiva do menino Agu (Abraham Attah), que perde a família durante um ataque ao seu vilarejo e, quando consegue fugir, é incorporado a um grupo de resistência sob o comando de um guerrilheiro mercenário interpretado por Idris Elba.
Beasts of no Nation é baseado no livro homônimo de Uzodinma Iweala, um escritor nigeriano que cresceu nos Estados Unidos, e foi roteirizado e dirigido pelo promissor diretor norte-americano Cary Fukunaga (da sensacional primeira temporada de True Detective).
Muito bem conduzido pelo diretor, o longa mantém o padrão qualidade das produções anteriores do Netflix, embora seja o primeiro desse gênero dessa que já vem se tornando uma gigante do entretenimento. O Netflix, que até então se dedicava apenas a séries e documentários, já estreou sendo bem aceito nesta nova seara. O longa levou o Prêmio Marcello Mastroianni do Festival de Veneza e foi indicado também para o Leão de Ouro e para o Prêmio Green Drop do mesmo festival. Era, inclusive, uma aposta para o Oscar, mas acabou não sendo indicado.
No quesito qualidade técnica, Beasts of no Nation se mostra melhor do que muito filme produzido para o cinema – é inclusive uma pena que não tenha sido exibido nas telonas, pois algumas das cenas merecem ser vistas em melhor tamanho e resolução.
A fotografia do longa de Fukunaga é belíssima, repleta de cores e da vivacidade características de grande parte das terras e dos povos africanos. As cenas gravadas nas matas nos levam por entre um cenário que quebra um pouco aquela imagem estigmatizada de que a África só tem poeira e terra seca. A ambientação é muito bem feita, desde os vilarejos até os cenários de acampamento de guerrilha.
Mas não é só pelos cenários que Beasts of no Nation merece ser visto. É muito fácil se emocionar com a atuação do menino Abraham Attah, que é impecável. Dá pra ver de cara que se trata de um talento muito promissor. Embora o nome de peso do elenco seja o de Idris Elba, é o menino Agu que nos mantém vidrados na tela, ansiando para que algo de bom aconteça.
Não é que Idris Elba esteja ruim no filme, muito pelo contrário, ele está muito bem no papel do Comandante – ganhou, inclusive, o Screen Actors Guild de melhor ator coadjuvante por esta mesma produção. O comandante está em ótimas mãos e o ator consegue parecer tão cruel, rígido e paternal quanto necessário.
O adendo aqui é que quem já o viu na pele do investigador quebrador de regras e bad ass Luther, no entanto, pode perceber traços muitos característicos na expressividade do ator que acabam fazendo com que os personagens sejam muito parecidos, embora sejam essencialmente diferentes. Idris Elba é um Luther genial demais e isso faz a atuação dele em Beasts não parecer tão incrível.
Isso não prejudica em nada o desenrolar do filme. Ambos os personagens são complexos e o longa consegue passar para o público o conflito interno que estão vivento. O comandante, por exemplo, é um verdadeiro retrato do paradoxo que é ser humano em um ambiente de guerra. Ao mesmo tempo em que se coloca como uma figura paterna para Agu e todo seu exército de meninos, também é a personificação da maldade, quando submete seus “filhos” a uma série de situações de sofrimento.
Beasts of no Nation é triste por isso: porque é um filme sobre pessoas e sobre até onde nós conseguimos chegar. Não traz tanta violência física escancarada quando produções como Diamante de Sangue, por exemplo, mas é pesado porque traz o contraste da inocência com a maldade. É a prova de que um filme não precisa de sangue e pilhas de corpos para ser violento.
Mais do que um filme de guerra, Beasts of no Nation é uma história sobre a crueldade e a morte da inocência. Enquanto acompanha Agu durante sua transição de menino a monstro, em algum momento você vai acabar se perguntando se vale a pena viver nesse mundo em que um menino quer pegar o sol na mão pra fazê-lo parar de brilhar, pra que ninguém mais precise ver as crueldades que os homens praticam aqui na terra.
Sem dúvida, o que mais toca no filme é o roteiro e o ponto de vista do menino, que conversa com Deus, com sua mãe, com o mundo, tentando entender como é que chegou até ali e o que significa tudo aquilo. O que Deus deve estar pensando sobre as coisas que eles vêm fazendo? O que sua mãe pensaria se soubesse as crueldades nas quais tomou parte?
É nessa sensibilidade que está a beleza de Beasts of no Nation. Infelizmente, aparece aqui também aquela tradicional perspectiva norte-americana que retrata o continente africano como se fosse uma coisa só e seus habitantes como um povo quase primitivo, que já não vê mais a vida com o mesmo valor que os ~ocidentais. Ainda assim, o filme tem um grande mérito pois consegue nos emocionar e despertar o espectador para a grande perda que acontece quando crianças são arrancadas de sua vida e de sua família para enfrentar uma realidade cruel. E, sabemos bem, isso não é uma exclusividade do continente africano.
Confira o trailer deste filme dirigido por Cary Fukunaga