Crítica do filme Blade Runner 2049
Da tecnologia à sedução
Já faz quase meio século que Philip K. Dick previu — em “Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?” — que as máquinas dominariam o mundo. Ainda que aclamada pela crítica, tal obra se popularizou mesmo em “Blade Runner, o Caçador de Androides”, adaptação que levava parte deste universo para a telona.
Dirigido pelo mago da ficção Ridley Scott, o filme que completa seus trinta e poucos anos ganha agora uma continuação inesperada. Ambientado trinta anos no futuro, “Blade Runner 2049” revela que a Terra não mudou tanto, mas que há segredos que podem desencadear em uma série de eventos que podem ser destrutivos.
Nesta continuação, temos um novo blade runner na trilha investigativa. O policial K (Ryan Gosling) segue à risca as ordens da tenente Joshi (Robin Wright) e, em seu atual caso, ele tem a incumbência de interrogar um fazendeiro rebelde e levá-lo para as autoridades. Todavia, a missão que parecia bastante simples acaba dando pistas para uma nova apuração.
Após desenterrar uma caixa misteriosa, ele encontra pistas que podem indicar onde está o antigo blade runner Rick Deckard (Harrison Ford). Como o policial aposentado está relacionado aos novos fatos? O que a polícia sabe de fato sobre as pistas deste caso? E qual a ligação da empresa dos replicantes por trás disso tudo?
Há inúmeras indagações e não pretendo dar pistas neste texto, já que as respostas estão todas nas 2 horas e 43 minutos de filme, tempo bem aproveitado para expandir este universo a patamares inimagináveis. Com isso, posso adiantar que “Blade Runner 2049” não é apenas uma sequência espetacular, mas uma ficção ousada e muito completa. Vamos prosear.
Toda obra cinematográfica pode estar um tanto limitada à sua época de produção, bem como à proposta de roteiro. No caso desta continuação, o atual momento é mais do que propício para criar e transformar toda a parte artística de inúmeras formas, já que a tecnologia de efeitos visuais não é uma limitação para a ambição da equipe de design e fotografia.
Falando na história do filme, há elementos reaproveitados e expandidos do longa-metragem de origem, mas, graças ao avanço no período de narração de “Blade Runner 2049”, podemos perceber como é possível incrementar ainda mais um universo rico em imaginação e levar a plateia para um futuro mais coerente e até convincente. Tecnologia é a palavra-chave e ela está em tudo, de carros a sistemas, de androides a interfaces.
Enquanto o primeiro título era focado no cenário noturno e em ambientes fechados, a obra dirigida por Denis Villeneuve nos dá uma imersão maior na grande cidade dos androides. O colorido ainda é chamativo, porém há maior nível de detalhes na construção de cenários, com uso de luzes, imagens, outdoors e elementos futuristas que deixam a ambientação mais crível.
Inúmeras cenas são desenvolvidas em plena luz do dia, mostrando regiões inexploradas da Califórnia dividida entre devastação e megaconstruções. Um simples passeio do policial K pelas ruas já é motivo para ficar extasiado com o avanço tecnológico. É claro que aqueles que já viram “Vigilante do Amanhã” podem notar similaridades, mas há inovação para todos os lados.
Os novos personagens apresentados em “Blade Runner 2049” são elementos-chave para essa expansão gloriosa já comentada. Primeiramente, temos o protagonista que, além de ser um androide charmoso, é um herói complexo em todos os sentidos. É talvez a presença de K que garante um desenvolvimento tão misterioso e ao mesmo tempo atraente para a trama.
A interação com sua namorada Joi (Ana de Armas) também vem a calhar, pois ela dá mais uma pincelada das novas tecnologias e agrega em cenas marcantes que reforçam a importância do Blade Runner na trama. Apesar de secundário e justificável, quem fica devendo no desenrolar da história é Jared Leto, que dá uma de Coringa e novamente só aparece de enfeite.
Tão importante quanto o desenvolvimento de cenário e a imersão dos personagens na história é a direção suprema de Denis Villeneuve, que cria uma conexão perceptível com a narração do roteiro — e também com o estilo de Ridley Scott — e inova ao acrescentar seu dinamismo em inúmeras ocasiões. Todo o aspecto minimalista dos ambientes internos, bem como a característica colossal dos grandes cenários aflora com a visão bem aguçada do diretor.
É claro que Villeneuve não leva os créditos sozinho. Roger Deakins é o homem por trás da fotografia, sendo então um visionário que levou essa nova perspectiva do deserto para o universo de Blade Runner. Há toda uma imensidão, lugares inóspitos, montanhas inacabáveis de lixo e muita poeira — numa tonalidade laranjada que deixa o visual estonteante — que nos levam a conhecer mais do mundo inabitado.
E não é preciso ver o filme para saber que, no meio disso tudo, em algum momento veremos Deckard novamente. O personagem está aqui com dois propósitos: vender ingressos (afinal, os fãs podem se interessar muito mais por revê-lo na telona) e agregar valor ao roteiro, que acaba usando alguns fatos do passado para fazer a ponte e deixar as coisas mais interessantes.
Seria perfeitamente possível fazer uma continuação sem o policial do primeiro filme, mas sua participação é conveniente e deixa o roteiro bem mais atraente. Apesar de puxar alguns acontecimentos do primeiro longa-metragem, posso afirmar com tranquilidade que não se faz necessário ver o primeiro filme para entender os pormenores da história.
Os roteiristas Michael Green (de “Alien: Covenant” e “Logan”) e Hampton Fancher (de “Blade Runner, o Caçador de Androides”) deixaram a história bem mastigada, ainda que alguns bugs (ou furos) sejam perceptíveis na trama. Os mais atentos vão ver que nem tudo foi resolvido em sua essência, mas pequenas incoerências nem de longe atrapalham a magnitude do filme.
Finaliza o pacote de “Blade Runner 2049” a trilha sonora espetacular e sem precedentes do mestre Hans Zimmer (que você já conhece de inúmeros filmes de Christopher Nolan) e de seu parceiro Benjamin Wallfisch (nome de peso que se destacou neste ano pelas trilhas de “IT – A Coisa” e “Annabelle 2”).
A colaboração aqui é impecável e o tom de cada artista é notável por características simples, mas que já marcaram suas carreiras. Hans Zimmer entra com tudo com recursos mais pesados, que lembram muito os grandes estrondos de “Dunkirk”, enquanto Wallfisch garante o tom de mistério constante em boa parte da trama.
O resultado são composições intensas, que remetem à sonoridade clássica do Vangelis (compositor da trilha do primeiro filme), porém inovadoras a seu tempo ao trazer algo muito mais robótico e assustador, o que caracteriza bem esse futuro mais carregado de suspense e tecnologia. A trilha já está disponível no Spotify.
Felizmente, todos esses momentos não se perderão no tempo, como lágrimas na chuva.
Hoje, temos uma continuação fenomenal chegando aos cinemas, que deve perpetuar o mundo dos replicantes e os Blade Runners para a eternidade. Veja e contemple o futuro!
Todos esses momentos se perderão como lágrimas na chuva