Crítica do filme Eu, Daniel Blake
Chá das cinco na fila do INSS
Atire a primeira pedra quem nunca quis soltar os cachorros em cima de um atendente via telefone - seja durante uma chamada de serviço público, seja de companhias telefônicas ou de operadoras financeira. E atire mais uma se você foi tratado como um ser humano todas as vezes que precisou de algum serviço público.
Pois bem, o longa-metragem "Eu, Daniel Blake" é um verdadeiro "cala-boca" para quem acha que morosidade e falta de vontade são exclusividades do sistemas brasileiros. Produzido inteiramente no Reino Unido, sob os olhos do diretor britânico Ken Loach e do roteirista indiano Paul Laverty, o longa-metragem é um verdadeiro retrato da cada vez mais frequente desumanização do atendimento oferecido ao chamado "cidadão comum" nas diferentes esferas públicas.
Depois de sofrer um ataque cardíaco, o carpinteiro Daniel Blake (Dave Johns) vive um conflito. A médica recomenda fortemente que ele não retorne ao trabalho, pois seu organismo ainda está muito frágil e em recuperação. Por conta disso, ele solicita o apoio financeiro oferecido pelo governo britânico a quem não está em condições de trabalhar por problemas de saúde - o famoso ~encostado.
Acontece que a "profissional de saúde" que faz a perícia de Blake considera que o senhorzinho na verdade é sim capacitado para trabalhar - independentemente da avaliação dos médicos e cirurgiãos que o atenderam - e ele perde o direito à pensão.
E é assim que nosso protagonista cai na fila do seguro-desemprego. O problema é que, para conseguir o benefício, ele precisa primeiro comprovar que vem gastando várias horas de cada dia procurando emprego - emprego este que, caso consiga, ele não poderá desempenhar, pois foi proibido pela médica.
Ou seja, aquela universalmente famosa sinuca de bico. Como desgraça atrai desgraça, em uma das idas e vindas ao equivalente britânico do INSS, Daniel conhece a família de Katie (Hayley Squires), que é tratada pelos órgãos sociais com a mesma falta de respeito e de atenção que ele.
Unidos pela desgraça, Daniel e Katie iniciam uma jornada de suporte mútuo enquanto buscam melhorar os recursos para sobreviver com condições dignas. Com todos os seus altos e baixos e idas e vindas entre visitas, procuras, ligações e formulários online, "Eu, Daniel Blake" é um retrato da burocratização dos sistemas e da mecanização das relações humanas.
Como está claro desde suas primeiras cenas, o longa-metragem se propõe a mostrar um lado que muitos de nós já vivemos: o da fila do SUS, do INSS, do Ministério do Trabalho, a fila de espera de qualquer atendimento por telefone ou internet.
"Eu, Daniel Blake, exijo a data da minha apelação antes que eu morra de fome (e troquem essa merda dessa música nos telefones)".
Com um olhar nostálgico e sotaque britânico, a produção usa de delicadeza e empatia ao mostrar não apenas como estamos cada vez mais humanos no trato com nossos pares, mas como também aqueles que se sobressaem frente à atitude padrão acabam sendo desencorajados ou censurados - a ponto de sofrer sanções.
Ou seja, sobre como somos desestimulados a atitudes de empatia e apoio aos outros. Com todas as letras, o longa mostra como a solidariedade se desenvolve mais facilmente entre os pares e como a chamada Síndrome da Pequena Autoridade faz com que qualquer oportunidade de humilhação dos "menores" é sempre aproveitada.
Além de um roteiro extremamente emocionante, capaz de levar o público às lágrimas diversas vezes por sua mera e genial simplicidade, "Eu, Daniel Blake" combina ainda outros fatores que tornam a produção ainda mais cheia de vida.
A principal delas é a atuação de cada um dos atores envolvidos. Dave Johns incorpora Daniel Blake com o coração aberto e parece sofrer de fato com cada uma das desventuras vividas pelo protagonista. Um personagem que claramente tem uma história de vida complexa e relações profundas interpretado com sensibilidade e delicadeza.
Mas não apenas ele. Hayley Squires arrasa no sofrimento e no desalento de Katie, que não sabe mais o que fazer para alimentar os pequenos Daisy (Briana Shann) e Dylan (Dylan McKiernan). Assim como Daniel, a mãe solteira desafortunada nos leva às lágrimas apenas com seu olhar.
Palmas também para os pequenos, especialmente Briana, que é extremamente talentosa.
Ao contrário de quem se defende gritando, em geral sem grandes domínios de procedimentos e linguajar, quem humilha e abusa do poder sabe o que está fazendo - e o faz com muita precisão e sem grandes alardes.
E sem grandes sonoridades também é a trilha de "Eu, Daniel Blake". Sem músicas, composto unicamente de som ambiente e das falas, salvo uma ou outra exceção, o longa-metragem mostra que é possível emocionar sem musiquinhas a la Disney.
A paleta de cores extremamente inglesa é um grande destaque e funciona como uma ferramenta na construção da narrativa. Tudo é cinza, a Inglaterra e suas adjacências é nublada e essas cores e tons melancólicos ajudam a escrever a história.
Tudo se encaixa pefeitamente nesse filme incrível e emocionante. É uma pena que poucas pessoas verão essa obra prima de Ken Loach nos cinemas, pois está em cartaz em poucos espaços. Mas, se tiver oportunidade, veja e veja no cinema!
Quando você perde a dignidade, você perde tudo