Crítica do filme Grave

Metamorfose antropofágica cinematográfica

por
Carlos Augusto Ferraro

24 de Agosto de 2017
Fonte da imagem: Divulgação/Petit Film
Tema 🌞 🌚
Tempo 🕐 4 min

☕ Home 💬 Críticas 🎭 Terror

Menos filme de terror e mais drama feminino, Grave acerta o tom em diferentes gêneros e entrega um filme peculiar de alta qualidade. A história sobre a metamorfose de Justine (vivida pela excelente Garance Marillier), uma jovem vegetariana, em uma canibal voraz não poderia ser uma metáfora mais forte e evidente para os conflitos típicos do amadurecimento.

Grave fisga a sua atenção com breves explosões viscerais à la Cronemberg, mas é a sua história intimista sobre identidade, aceitação e amadurecimento que realmente prende o espectador. O apetite de Justine é por carne. O que soa óbvio, não se traduz como tal na prática. Não se trata de uma fome por alimento, mas por essência, experiência, é uma fome de viver.

“Marvada carne”

A história de Justine - cujo nome já evoca um imaginário perverso próprio do Marquês de Sade - começa com sua chegada a faculdade de veterinária, a mesma que seus pais cursaram e que sua irmã também frequenta. Assim que chega na universidade ela já é obrigada a encarar os trotes dos alunos veteranos -- incluindo sua irmã mais velha.

Entre o medo do desconhecido e o torpor da overdose sensorial, Justine tenta ocupar seu espaço sem chamar atenção, passado despercebida pelos outros. No entanto, tudo muda quando a menina virginal prova do proverbial fruto proibido (no caso um pedaço de fígado de coelho cru), a então vegetariana convicta dá início a uma mudança não apenas em sua dieta, mas em todo seu comportamento.

Ao se deparar com novos “sabores”, Justine passa a explorar aspectos até então restritos de sua personalidade. Se o abdomen definido de seu colega já inspirava fantasias de odaxelagnia, agora o desejo era praticamente incontrolável e ela quer cravar os dentes muito mais fundo.

Aquele pescoço exposto, aquela barriguinha definida... Quem nunca quis dar uma mordidinha?

Matando a fome

Exageros midiáticos, e plateias impressionáveis, ajudaram a trazer fama para o filme de Julia Ducournau, o que no final é um desserviço, haja vista que nenhuma cena é especialmente gráfica a ponto de chocar fãs do gênero. Além disso, Ducournau se utiliza muito inteligentemente desses momentos sem se fazer valer de litros de sangue e membros dilacerados apenas para chocar.

Na verdade, é notável a intuição de Ducournau, que mesmo estreando na direção conduz a trama com maestria.  Com a ajuda da cinematografia de Ruben Impens e a trilha de Jim Williams, a diretora transita sem complicação entre panorâmicas melancólicas e closes claustrofóbicos. Destaque para o plano sequência que acompanha Justine em sua primeira festa da faculdade, colocando o espectador no mesmo ponto de confusão sensorial que a protagonista

Por sinal, se o talento de Ducournau já não bastasse como grande destaque feminino da película, ainda temos o deleite de acompanhar a atuação de Garance Marillier no papel de Justine. Capaz de navegar velozmente entre a inocência e a decadência com apenas olhares e sorrisos, ela transpira emoções e apresenta uma performance sólida a ponto de desconsideramos o elemento absurdo da história.

Lambendo os beiços

Apetite por destruição

Ducournau já afirmou em entrevistas que não é uma “mulher fazendo filmes para mulheres”, e apesar do feminino ser um elemento forte e inegável ao longo de todo o filme, os conflitos identitários são universalmente compreensíveis, independente de gênero ou sexualidade. No fim, o que vemos é a metamorfose de garota, assustada e ingênua, em mulher, forte e independente.

Não diferente de qualquer outro adolescente que pela primeira vez se deparar com o mundo real, ela é forçada a crescer e se definir não mais como filha, ou irmã, mas como indivíduo. Grave é, em essência, um drama sobre uma multitude de temas, ou seja, não estamos falando de um cannibal exploitation - como Holocausto Canibal e tantas outras maravilhas da década de 70 - mas não se deixe enganar, melhor assistir de estômago vazio.

Nutella é para os fracos

Fonte das imagens: Divulgação/Petit Film

Grave

Você tem fome de quê?

Diretor: Julia Ducournau
Duração: 68 min
Estreia: 15 / mar / 2017