Crítica M8 - Quando a Morte Socorre a Vida
Visibilidade para os injustiçados
Quando falamos em cinema como um termo generalista para os filmes, as pessoas logo pensam em produções cinematográficas hollywoodianas, protagonizadas por grandes celebridades de países do primeiro mundo e, muitas vezes, focadas em temas ficcionais. Não que o cinema não tenha outros inúmeros desdobramentos e espaço para uma infinidade de outras concepções a partir do ponto de vista do público.
No entanto, ainda que o cinema seja supostamente um espaço livre tanto do ponto de vista temático quanto da perspectiva da produção das obras, é inegável que a balança da sétima arte pende muito para o lado ocidental e foca muito mais nas culturas ocidentais, protagonizadas por homens, brancos, de boa condição financeira e heterossexuais.
Felizmente, há um bom tempo, diversos movimentos levantados por inúmeros cineastas, atores, roteiristas e produtores (para citar alguns) vêm tomando ações das mais variadas para transformar este meio, seja com a inserção de outros grupos étnicos, raciais e de gênero na produção e na protagonização, bem como pela abordagem de temas que exibem outras realidades que não sejam a do galã estereotipado de Hollywood.
Assim, é maravilhoso quando podemos ver um filme como “M8 – Quando A Morte Socorre A Vida” ganhando voz e vez no circuito ao levantar diversas dessas bandeiras, ainda trazendo uma história relevante (fictícia talvez até certo ponto, mas baseada em várias histórias reais) e com excelente qualidade técnica. Se você chegou munido de preconceitos, recomendo baixar as armas e ler com atenção alguns parágrafos do porquê vale prestar atenção nesta obra.
Dirigido pelo cineasta Jeferson De, “M8 – Quando A Morte Socorre A Vida” não conta uma simples história de um protagonista brasileiro negro da periferia que busca seu lugar no mundo. O roteiro assinado por Jeferson De e Carolina Castro vai muito além do trivial e abraça inúmeras histórias que jamais foram contadas por conta da injustiça social e que, aliás, nunca poderiam ser contadas, pois em muitos casos foram enterradas como indigentes.
Calma, há sim um fio condutor a ser acompanhado e ele nos mostra a história de Maurício (Juan Paiva), um jovem que acabou de entrar para o curso de Medicina numa Universidade Federal e que começa a enfrentar diversos dilemas dentro da sala de aula e também em seu cotidiano. O rapaz é filho de Cida (Mariana Nunes), uma auxiliar de enfermagem, que desempenha mais do que o papel de mãe, pois traz o relato de quem já passou por situações de preconceito e serve como uma ponte para expandir as temáticas.
Bom, mas voltando ao jovem Maurício, em sua primeira aula de anatomia, ele é apresentado a M8 (Raphael Logam), corpo que servirá para os estudos de biologia de vários colegas de classe durante o primeiro semestre. Todavia, enquanto muitos enxergam apenas um cadáver pronto a ser estudado, Mauricio vê alguém semelhante e enfrenta angústias para desvendar a identidade desse rosto desconhecido em uma jornada assustadora e com um choque de realidade.
Com um roteiro pronto a atender inúmeras questões raciais, econômicas, sociais, culturais, religiosas e até de gênero, o filme “M8 – Quando A Morte Socorre A Vida” dá uma aula aos inocentes que acham que o mundo gira em torno de seus respectivos umbigos. Mesmo que de forma dramática e encenada, os inúmeros aspectos abordados na rotina de Maurício são apenas um xerox do que a gente vê diariamente nos jornais, na televisão e na internet.
Assim, é muito bom ver um filme que toca em várias feridas e que mostra como a questão da desigualdade está diretamente atrelada a um racismo estrutural, que se dá nos mais diversos níveis da sociedade. E mais importante: coerente como deve ser uma obra responsável, o título vai muito além do vitimismo e tenta ponderar outros lados que tentam colaborar no combate ao racismo, mas que ainda tropeçam ao não ter a mesma percepção de mundo.
Com ótimas atuações de Juan Paiva e Mariana Nunes e a presença de grandes nomes como Zezé Motta e Pietro Mário, o filme tem um elenco bem diversificado, que faz um trabalho competente ao construir a história de Maurício. O jovem Paiva personifica muito bem as dores e dilemas de um jovem que sofre golpes de todos os lados e passa por uma fase muito conturbada chamada “vida”.
Talvez o único tropeço do filme seja a busca em abraçar todas as causas e cair em divagações sobre temas que não são exatamente dão continuidade ao cerne proposto pela obra. Ao menos, essa é a impressão que fica quando algumas cenas ficam em aberto e quando determinados trechos são abordados tão vagamente. Com menos de uma hora e meia de duração, a produção não cansa e, quem sabe, um roteiro até mais extenso poderia dar conta de tudo e seguir no mesmo propósito.
De qualquer forma, é muito bom ver pequenas situações que ao menos servem como uma breve pincelada de tantos absurdos que podem ser falados e abalar a vida de um jovem que já passa por inúmeras situações complexas por diversas questões sociais. Muito bom ver também um filme que aborda outros gêneros musicais e religiões de matrizes africanas, pois tais aspectos não apenas compactuam com o enredo, como também diversificam o cenário dos filmes nacionais.
Por fim, mas não menos importante, eu acho importantíssimo comentar sobre a direção bem pontual de Jeferson De, que mostra muito talento em um filme tão diversificado, indo de ótimas cenas de terror sobrenatural nas aulas de anotomia até situações de terror psicológico e com carga dramática profunda, como uma abordagem policial truculenta e rotineira. E ele conclui sua obra de forma magistral, homenageando os tantos negros injustiçados.
É óbvio que “M8 – Quando A Morte Socorre A Vida” não resolve a questão do racismo no cinema, tampouco é uma obra perfeita em questões técnicas ou de roteiro, porém é um filme bem intrigante e que serve muito mais como protesto educacional do que como ficção. Uma produção necessária e que vem para dar um alento a tantos que foram por tanto tempo invisíveis.
Rosto desconhecido