Crítica Que Horas Ela Volta?
Gente considerada pequena demais para as telonas
“Que Horas Ela Volta?” se compromete a mostrar para o mundo as contradições na relação entre empregadas domésticas e seus patrões. O filme que quase teve a chance de representar o Brasil na disputa pelo Óscar de melhor filme estrangeiro é baseado em muitas histórias reais desse país com maior número de empregadas domésticas no mundo, estimando seis milhões de trabalhadoras com menos de 20% delas exercendo a função com carteira assinada.
Val (Regina Casé) é a protagonista que reúne traços comuns das biografias de milhares de mulheres invisibilizadas e que estão sempre presentes fazendo rodar as engrenagens do nosso sistema. Ela não apenas trabalha como empregada doméstica e babá na enorme mansão dos patrões Carlos (Lourenço Mutarelli) e Bárbara (Karine Teles). Sua função compreende dedicar todo o afeto aos cuidados de Fabinho (Michel Joelsas), o filho mimado do casal, assim como oferecer seus serviços durante dias inteiros de sua vida para uma família desacostumada a retirar a mesa após as refeições ou lavar um simples copo.
Val praticamente não existe, mas quando convém aos seus empregadores recebe o título de “quase da família”. Expressão que surge da intenção de exprimir as virtudes de uma empregada melhor que qualquer outra, embora saibamos que por trás desse “reconhecimento” existem violações de sua dignidade que passam desapercebidas por conta da sistemática naturalização das injustiças.
Há vários detalhes que observamos na rotina de Val e, de modo cuidadoso, a técnica utilizada pela diretora Anna Muylaert (roteirista de O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias) prioriza cenas nos espaços mais comuns aos empregados. Situações que se repetem a ponto de silenciosamente evidenciar que a cozinha, por exemplo, é o cômodo onde os homens (que não são empregados) jamais entram.
Val é a pernambucana que sai de sua terra natal para conseguir emprego em São Paulo e sua vida como babá de Fabinho a colocou longe da própria filha por durante treze anos. Trata-se de uma representação cinematográfica do conceito de “maternidade transferida”: recai sobre a mulher de origem pobre e periférica o custo para que Bárbara, a patroa, se apresente à sociedade como uma pessoa independente.
Existem até classificações que diferem produtos usados pelos patrões daquilo que os empregados consomem: o sorvete do menino Fabinho, o sorvete dos empregados. Assim é transmitida a noção de que tudo funciona em harmonia, cada macaco no seu galho, cada indivíduo em sua casta sem cruzar o espaço do outro.
Em vários diálogos Val insiste na ideia de que nascemos impregnados do nosso papel social e que se deve aceitar o próprio destino. Como se nossa missão constasse no DNA de modo que fosse possível definir desde cedo as pessoas que podem lavar copos, cuidar de crianças, viver com os próprios filhos ou cursar uma faculdade. Mas agir em desacordo com essa lógica fatalista é algo extremamente perigoso para sua estabilidade econômica.
O acontecimento que finalmente põe fim a toda calmaria de uma vida disfarçadamente normal na mansão é a vinda de Jéssica (Camila Márdila), a filha da empregada que precisa morar temporariamente com sua mãe, tendo por objetivo prestar vestibular na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. O marco para a desestruturação das hierarquias e origem de todo desconforto é a presença dessa jovem, que observa criticamente e se opõe à vida que é do jeito que é “porque tem que ser” ou “porque sempre foi assim”.
Há quem interprete a personagem Jéssica como alguém que pouco sabe sobre a vida, uma jovem mimada que se recusa a viver do jeito certo. Entretanto, o resgate de sua origem, tudo que lhe foi roubado desde cedo e o esforço necessário para que conquiste espaços nunca antes alcançáveis pelas pessoas de sua classe social são fatores que a tornam um símbolo de esperança por dias melhores.
Os aspectos negativos dessa obra são poucos e dizem respeito a alguns escorregões que comprometem a coerência do discurso: se por um lado conferimos a denúncia de várias opressões sofridas pelas empregadas domésticas num enredo que se desenvolve descontraidamente, por outro a lógica meritocrática é reforçada quando o vestibular nos moldes da educação brasileira é representado como um processo seletivo justo.
Existem abusos que são escancarados, como o assédio que Jéssica sofre por meio dos insistentes agrados do patrão de sua mãe. Mas para admirar “Que Horas Ela Volta?” é preciso contextualizar o que há de sutil no texto de cada personagem e compreender que os abusos são elementos históricos e estruturais da sociedade brasileira.
É uma história de gente considerada pequena demais para estar nas telonas, tendo grande êxito na missão de provocar reações em todos que até agora assistiram. Por aí vemos depoimentos de patrões que assistem e não enxergam qualquer mensagem, enquanto empregadas se sentem representadas e se identificam com boa parte das cenas.
Não há dúvidas de que existem questões técnicas que precisam melhorar, como a atuação sem sal de alguns atores ou a sofrível tentativa de uma carioca imitar o sotaque pernambucano. Mas combater o cinismo dos opressores com representatividade nas telonas é um passo imenso para o cinema brasileiro, que contempla apenas as violências dos confrontos armados e ignora o que há de mais cotidiano.
O filme brasileiro mais relevante de 2015!