Crítica do filme Rafiki
Tão real quanto o amor
Primeiro longa metragem queniano a ser exibido no Festival de Cannes, “Rafiki” desafia as leis do país ao abordar um romance lésbico. Com um olhar sutil e delicado, a diretora Wanuri Kahiu não só levanta a bandeira dos direitos humanos, mas reforça a ideia de que cinema é político, e também é uma ferramenta da arte para expressar questões sociais.
Inspirado no conto “Jambula Tree” da premiada escritora ugandense Monica Arac de Nyeko, “Rafiki” conta a história de uma amizade improvável entre duas adolescentes que vivem em um agitado conjunto habitacional em Nairóbi, capital do Quênia. Filhas de políticos rivais, Kane (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva) começam a viver um amor em um mundo que luta para não o tornar real.
Não diferente dos romances shakespearianos, em que há famílias “inimigas” e o surgimento de um romance proibido entre elas, a diretora Wanuri Kahiu foge do trágico e incorpora um olhar artístico para revelar um amor entre duas mulheres em um país que criminaliza a homossexualidade.
Com um estilo que beira o cinema moderno e a estética da nouvelle vague, o roteiro retrata personagens em seu cotidiano e a sua relação com o ato de amar. É a presença da vizinha fofoqueira vigiando tudo o que acontece no bairro, um divórcio não superado, o amigo que insiste em uma paixão inexistente, a amiga ciumeta e as fragilidades em torno da paternidade.
O que poderia ser considerado um ato rebeldia e afronta, o filme relembra o porque a sociedade precisa de arte e como o cinema é uma ferramenta artística para desafiar preconceitos estabelecidos em uma sociedade conservadora.
Assim como na trama, que tanto Kane e Ziki procuram contestar status quo, o longa de Kahiu retrata como as leis do Quênia e a população do século XXI penaliza relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Para fora da ficção e dentro da realidade, “Rafiki” foi proibido de ser exibido no próprio país por “promover o lesbianismo”, segundo o governo local.
Tão delicado quanto o amor que florece de uma amizade, o longa surpreende na direção de arte que através da cenografia harmoniosa de Arya Lallo a paleta de cores vibrantes com estampas e texturas diferentes engrandece a identidade cultural do país.
Além da composição de tonalidades rosa, lilás e azuis, em destaques em boa parte das cenas, são cores que estão presentes nas bandeiras do movimento lésbico, transgênero e bissexual. Essa sutileza revela a preocupação de transmitir os mínimos detalhes do mundo LGBT+ ao espectador.
Com o uso de câmera na mão, trilha sonora em momentos oportunos e planos arrojados criam a sensação de estar assistindo um videoclipe intenso e foge do hemisfério fílmico. Rafiki não vem somente para reforçar a ideia que o cinema necessita de mais diretoras mulheres para contar histórias de amores lésbicos, mas destacar internacionalmente o potencial do cinema africano.