Crítica do filme Noé
Fantasia bíblica independente de religião
ATENÇÃO: Esta crítica contém alguns spoilers.
Se você pensa que já conhece a história e que o filme é uma clara tentativa de te fazer acreditar em um Deus cristão, você está errado. "Noé" é baseado em uma história bíblica, mas não tem a pretensão de evangelizar ninguém. Daren Aronofsky usa de licença poética para demonstrar sua visão de uma forma épica, com alguns pontos questionáveis, mas mantendo sempre a essência e valores dessa história que é um marco para a fé de milhões de pessoas.
Após serem expulsos do Paraíso por terem provado o fruto proibido, Adão e Eva têm três filhos: Caim, Abel e Set. Caim assassina Abel e é condenado a vagar pelo mundo, então Set nasce como substituto de Abel, sendo considerado justo e herdeiro de Adão.
Nóe, descendente de Set, recebe um sonho profético cujos detalhes não são muito claros, algo envolvendo uma maçã, uma cobra, fogo, morte, uma enchente e mais morte. Com esse sonho ele entende que tem que construir uma arca e colocar dentro um macho e uma fêmea de cada espécie de animal pra salvar o mundo e sua família. Ao contrário do fogo, a água não destrói simplesmente, mas limpa e purifica, sendo assim a Terra seria lavada do mal que os filhos de Caim espalharam pela Terra.
É importante notar que Deus não aparece em nenhum momento, sendo referido apenas como o Criador e percebido pelos personagens apenas como manifestações da natureza. Sendo assim, nenhuma das decisões que Noé tomou foram "ordens diretas do Criador", mas sinais sutis dando uma direção sobre o que iria acontecer. Sim, Noé e sua família foram escolhidos para serem salvos por manterem suas vidas voltadas a Deus, e por isso eram considerados bons e dignos de viver no mundo renovado. Mas Noé entende que todas as pessoas devem morrer, incluindo ele e sua família.
Aronofsky escreveu (junto com Ari Handel) e dirigiu, e assim como os protagonistas de seus filmes anteriores (o matemático de "PI", o viciado em drogas de "Requiem para um Sonho", o sonhador romântico de "Fonte da Vida", "O Lutador", e a bailarina de "Cisne Negro") Noé possui uma obsessão que o leva a beira da loucura, fazendo-o tomar decisões terríveis e capaz de matar todos a sua volta apenas para completar seu objetivo.
Ao contrário do que se possa pensar, esse não é um filme para os fiéis cristãos, mas para qualquer ser humano que acredite em bem e mal. Em determinado ponto, Noé afirma que não existem pessoas boas, todos eles foram expulsos do Jardim de Éden por desagradar o Criador. Mas sua esposa Naameh contesta, dizendo que seus filhos eram bons.
Nesse ponto deixamos de lado o maniqueísmo e vemos que ninguém é totalmente benigno e maligno, no máximo um dos lados se destaca mais. É tudo uma questão de escolha. Uma das frases que melhor descrevem o filme não é proferida por Noé, mas sim por seu rival Tubal-Cain (Ray Winstone), descendente de Caim e autoproclamado rei.
Um homem não é governado pelos céus. Um homem é governado por sua vontade (livre-arbítrio).
Noé segue suas convicções, assim como Tubal-Cain segue as que foram ensinadas pra ele.
Durante o Dilúvio, Tubal-Cain tenta salvar seu povo da única maneira que ele sabe, com violência e tomando tudo a força, enquanto Noé só busca a segurança de sua família e o término da sua missão, entretanto muitas vidas inocentes foram tiradas nesse processo, e esse é um questionamento bem explorado durante o filme.
Vários conflitos são desenvolvidos enquanto a chuva não vem, tudo que está na Bíblia é representado ali, acrescentando alguns detalhes na história que servem apenas para enriquecê-la e preencher alguns furos.
As filmagens foram feitas em regiões remotas da Islândia, dando as paisagens um aspecto imenso, assustador e fascinante. Destaque para as sequências em time-lapse, como o rio que percorre a terra, os pássaros indo em direção a Arca, e a história contada no livro de Gênese sobre o começo do mundo.
Os produtores buscaram as referências para construir a Arca com as mesmas dimensões descritas na bíblia e a construíram de verdade. Com exceção de alguns pássaros, todos os animais são feitos em computação gráfica, mas são convincentes e servem bem para retratar a história.
Se você sempre se perguntou como tantos animais diferentes conseguiram conviver pacificamente dentro de uma arca, a resposta é muito simples: eles hibernaram! A família de Noé prepara uma poção mágica, jogam fumaça nos bichos e eles dormem. Simples e eficiente. Uma curiosidade engraçada: alguns animais sofrem acidentes durante o percurso e acabam morrendo, e nenhum desses bichos existem hoje em dia.
E não, nenhum dinossauro foi salvo.
Tudo isso é muito melhor aproveitado nas telas gigantes dos cinemas, e os efeitos 3D são bem decentes, sem coisas sendo jogadas na sua cara desnecessariamente. O 3D serve para enfatizar pontos nos efeitos, como a chuva e as estrelas. Eu normalmente odeio filmes em 3D, mas nesse caso achei a aplicação interessante.
Vale aqui um destaque para os Guardiões, anjos caídos que vieram para ajudar os homens, mas acabaram presos à terra e as pedras. Eles são toscos, disformes e parecem mal animados. Mas tudo isso é proposital, pois eles são anjos caídos e perderam a glória divina de antes, tornando-se seres que não pertencem a esse mundo e não combinam nem um pouco com ele.
Apesar de parecerem deslocados e fantasiosos demais, eles tem um papel fundamental ajudando Noé, e com o tempo suas vozes graves e movimentos estranhos se tornam agradáveis. Mas é nas cenas de batalha que eles utilizam todo seu potencial, com armas e movimentos que só eles poderiam usar com eficiência, alcançando a redenção que eles tanto buscavam.
Falando em batalhas, e essas não são as únicas partes com ação, elas são acompanhadas por uma trilha sonora que combina perfeitamente com cada cena, cada movimento é marcado por um som dentro da música, praticamente uma orquestra sendo regida pelas imagens. Clint Mansell, que já trabalha com Aronofsky há algum tempo, acertou novamente nas composições.
Russel Crowe encarna Noé de uma forma muito convincente. Ele é heroico, mas ainda humano e limitado, é correto e justo, mas tem momentos de dúvida como qualquer um de nós. E é atormentado por uma tarefa dada a ele por ninguém menos que Deus, um peso que não é fácil de suportar. A evolução e profundidade desse personagem são muito visíveis e marcantes. A construção da Arca é seu objetivo, mas todas as escolhas que envolvem esse feito precisam e são tomadas por ele.
Jennifer Connely interpretando Naameh, mesmo sendo apenas uma mãe de família que apoia o marido e cuida dos filhos, continua linda, assim como Emma Watson, que dispensa qualquer comentário sobre sua beleza. Interpretando Ila, uma descendente de Caim que é encontrada gravemente ferida e é adotada e amada pela família de Noé, especialmente por seu filho primogênito, Sem.
Ila é um personagem tão importante quanto Noé, pois ela está designada a casar-se com Sem e repovoar o mundo, mas devido ao ferimento que ela recebeu na barriga momentos antes de Noé encontra-la, ela é estéril. Porém, é durante o Dilúvio que ela rouba a cena, interpretando de forma magistral juntamente com Jennifer Connely o papel das mulheres, mostrando que elas não são só rostinhos bonitos.
Sem, o primogênito bonito, obediente e apaixonado por Ila, faz apenas isso e não se destaca muito. Cam, o filho não tão bonito assim, filho do meio que acaba virando a ovelha negra da família, mostrando que a família de Noé não era tão pura e perfeita assim.
Apesar de ter um papel relativamente importante na trama, ele não se destaca muito mais do que filho desobediente, tomando escolhas não muito inteligentes ao longo da trama. E Jafé é só o filho mais novo, ele cuida dos bichos e tenta não atrapalhar muito, aliás, não tenho certeza se ele fala.
Anthony Hopkins, que interpreta Matusalém, sendo assim avô de Noé, rouba a cena cada vez que aparece. Seu papel é o de conselheiro, e é a ele que Noé recorre para entender seu sonho profético, e a ele que Naameh pede ajuda sobre a esterilidade de Ila e a descendência dos homens após o dilúvio. Ele é um velhinho muito simpático e tudo que ele queria eram algumas frutinhas silvestres, mas acaba ajudando todo mundo com sua magia de velhinho sábio.
Noé é recheado de fantasia, mas retrata a história da Arca de Noé de uma forma empolgante, guardando ainda uma mensagem sutil sobre tolerância e justiça. E principalmente sobre nossas escolhas. Aconselho a assistir sem expectativas, pois com certeza você vai se entreter com essa história fantástica.