Crítica do filme Gattaca | Contra os negacionismos cada vez mais atuais
Gattaca, produção de 1997, trata de um futuro não tão distante, no qual a ciência venceu, porém, a falta de humanidade também. Na mesma direção, o que o negacionismo científico de 2021 nos diz sobre essa produção, que está próxima dos seus 25 aninhos? A genética ou a capacidade representa nossa identidade?
"Gattaca" conta com direção de Andrew Niccol e com produção executiva do consagrado Danny DeVito (o Pinguim do Batman, de Tim Burton). Nessa produção, a ascensão social é exclusivamente marcada pelo DNA (Ácido Desoxirribonucleico), composto orgânico responsável pelo desenvolvimento e funcionamento de todos os seres vivos, cuja combinação é única para cada ser celular. Não por acaso, o signo principal do filme provém dos quatro compostos de Base Nuclear do DNA (Guanina, Adenina, Timina, Citosina) formando três sílabas, portanto, o título do filme = GATTACA.
Lembram da ovelhinha Dolly e o sequenciamento genético do final dos anos 1990?
A configuração temática da impossibilidade de ascensão social está presente no signo da fita do DNA, inclusive o formato da escada da mansão do ator coadjuvante Eugene, de "Gattaca" (Jude Law – sacaram o nome dele? Eu [do grego = bom) gene]?). Ele é a exata representação teórica do DNA, tendo em vista que, por ser paraplégico, ele não concede subir literalmente a sua própria escada, o que o faz também, para além da sua prisão chamada lar, que não ascenda socialmente.
Assim, a estratificação social é garantida por um modelo, o qual chamamos sociedade estamental. Nesse sentido, o filme mostra que pouco após o nascimento, a partir de uma amostra de sangue, a criança já será sagrada ou condenada, pois o exame já mostra a probabilidade que terá de contrair doenças crônicas, prevendo até mesmo o possível tempo de vida.
No contexto de Gattaca, há o geneoísmo, o preconceito social por pessoas de base genética rejeitada pelas instituições. Nesse caso, os nascidos naturais, são chamados degenerados ou uterinos, filhos da fé, e até mesmo de inválidos, uma vez que se opõem aos bebês selecionados geneticamente, com sêmens de homens selecionados, em clínicas que disponibilizarão uma inseminação que produzira o feto mais perfeito possível.
São Uma Thurman e Jude Law os coadjuvantes que acompanham o destino de Vincent (Ethan Hawke), o qual terá como companheira a personagem de Uma Thurman, Irene, e seu fornecedor genético, Eugene, cujo excelente papel é feito por Jude Law. Este é um cadeirante que possui um DNA praticamente perfeito, mas sua ascensão foi interrompida por um acidente ainda jovem que o deixou deficiente quando era um atleta medalhista, que buscava o ouro na natação.
Ele empresta seu nome verdadeiro, Jerome Morrow, a Vincent (Ethan Hawke), que, em virtude do péssimo DNA (de doença crônica no coração, ele é um filho da fé, uterino), ele aceita submeter-se a um duro processo de se passar por outra pessoa, a fim de ascender socialmente por meio do ingresso no projeto Gattaca. Embora não se explique no filme, está claro que é uma instalação de alta tecnologia, voltada para superdotados geneticamente, com o direito a fazer parte de um projeto espacial no final do curso.
Gattaca: um X-Men às avessas?
Se pensarmos bem, "Gattaca" seria um X-Men às avessas. A história de X-Men foca na mutação natural do gene, que torna o detentor da mutação menosprezado socialmente, mas ao mesmo tempo poderoso em alguma direção. Gattaca, por sua vez, não “tira com uma mão e dá com outra”, ou seja, ou se nasce geneticamente superdotado ou se vai para o baixo escalão social que esse tipo de seleção natural (ambientada em testes laboratoriais) destina aos seres “inferiores” geneticamente.
As entrevistas de emprego representadas no filme nem sequer pedem que o entrevistado fale, coloca-se um potinho na frente e pedem um fio de cabelo para teste. Assim, ao se deparar com essa situação, Vincent tenta ser um falso alpinista social, fato que o levará a procurar Jerome Morrow, Eugene, o cara do “bom gene”.
A trama tem duas camadas, além daquela camada social que foi apresentada anteriormente, ou seja, há uma trama relacionada aos coadjuvantes de Vincent (já citados acima) e uma outra completamente clichê. De fato, esse outro percurso narrativo poderia ser excluído do filme, mas a influência hollywoodiana da produção tornou necessário mostrar o drama familiar de Vincent, o qual acredito ser o único incômodo do filme.
Na mesma direção em que Vincent é o oposto de Eugene, Vincent também é o oposto de seu irmão Anton, que, após seu pai não gostar dos genes de Vincent, decide produzir um filho biologicamente perfeito e o batizar com seu nome, Anton. Não é necessário dizer que os dois irmãos criam rivalidade desde pequenos e que, apesar de Vincent ser uterino, ele vence o irmão perfeito em um dos desafios e por aí vai esse plot chato. Para mim, um plot completamente desnecessário e o único problema do filme.
Muito antes de Black Mirror...
Tecnicamente, o filme é interessante pois se passa em uma sociedade distópica sem necessariamente valer-se de efeitos especiais. Como foca no tema da manipulação genética e não nos encadeamentos narrativos em planos rápidos e de ação, o filme é muito utilizado, por exemplo, em escolas no Brasil, para discutir a importância da herança e da manipulação genética e seus percalços sociais.
O filme Gattaca serve de alerta sobre a questão de que o determinismo social pode fazer o ser mais perfeito geneticamente ser um inválido, enquanto a força de vontade (signo metafórico de Vincent) seria o motor para se vencer socialmente. Fica o mérito para a cena em que os alunos de Gattaca testemunham um pianista como o único ser que pode tocar aquela peça musical, pois ele tem polidactilia, por isso, os seis dedos o fazem executar com perfeição a arte.
Esse jogo de valores e outras camadas de interpretação é que importam no filme, por isso, o indico como um tipo de produção de arte mais lenta e de fruição sociocultural.
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