Crítica do filme O Poço | Angustiante, visceral e incômodamente atual

O novo filme da Netflix tem dado o que falar, principalmente pela sua temática e seu final em aberto. “O Poço” é um filme de terror que assusta por ser uma fábula aplicável a vida real. O confinamento obrigatório por conta da pandemia que está nos assolando a algum tempo nos força a buscar distrações, mas quando elas falham passamos a olhar para nós mesmos e como a estrutura social vigente é falha.

“O Poço” foi pensado originalmente para o teatro, mas ao passar para a película ganhou um peso ainda mais sombrio e visceral que dificilmente seria possível em uma peça teatral.

A Netflix acertou no momento de disponibilizar esse título, já que o distanciamento social e a falha estrutura socioeconômica  pode nos mostrar o pior do ser humano, é assustador o quanto o longa é análogo a nossa realidade.

“Existem três tipos de pessoas. As de cima, as de baixo e as que caem”

O longa se passa inteiramente em um “Centro Vertical de Autogestão”, uma torre que serve de prisão, conhecida como O Poço. Somos apresentados a Goreng (Ivan Massagué) que ao contrário do que se espera decidiu por conta própria ir para lá, pois queria ler “Dom Quixote” e ainda ganharia um certificado no final de sua estadia de 6 meses.

Lá, ele conhece Trimagasi (Zorion Eguileor), um idoso que será seu companheiro de cela naquele mês. Há meses nessa prisão, ele didaticamente explica como funciona a estrutura do local. Não há luz solar e o alimento é enviado para cada andar através de uma plataforma que se move entre os andares todos os dias.

Goreng e Trimagasi estão no nível 48, então precisam esperar os 47 níveis acima se alimentarem até que os restos cheguem ao seu andar. Não demora para ficar claro que os meses ali serão como um pesadelo e que simbolizam a própria condição humana: o medo, a solidão e o desespero que mostra o pior lado de cada um.

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O luxuoso banquete é preparado no nível zero com as comidas favoritas de cada um dos prisioneiros, mas a plataforma permanece por apenas dois minutos em cada nível. Não é permitido estocar a comida, sob a pena de sofrer com calor ou frio extremos até a morte.

Mais tarde, é explicado que o banquete é pensado de forma a alimentar todos os níveis, mas fica claro que a estrutura é falha pois os níveis superiores costumam comer muito mais do que deveriam, sem se importar com quem está abaixo. A cada 30 dias, os presos são remanejados para outros andares, podendo subir ou descer de forma aleatória, o que reforça ainda mais a estrutura falha da prisão, forçando que todos passem por situações extremas até atingir os limites da fome e da sanidade humana.

Em sua estreia como diretor, o espanhol Galder Gaztelu-Urrutia acerta na narrativa com muitos elementos de gore e suspense, explicando muito alguns aspectos da trama para permitir deixar em aberto outras. Fica clara a influência de Platão e de obras neo-platônicas como Dom Quixote, que permeiam o filme para elucidar alguns pensamentos a respeito do Poço, cada detalhe é pensado para levar a uma interpretação maior da obra, principalmente a semelhança entre o protagonista e o “cavaleiro das causas perdidas”.

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“O Poço” escancara e critica a ideia de que as estruturas sociais por si só não são capazes de educar os seres humanos para a verdadeira incorporação da justiça. O modelo socialista e a luta pela justiça social é criticado constantemente ao longo do filme, que levanta um debate importante para a educação da personalidade dos indivíduos através da conquista das virtudes.

Apenas o medo pode educar, ou a própria educação?

Goreng percebe que ninguém é beneficiado na prisão, tentar fazer os níveis acima mudarem ou até mesmo serem ouvidos é uma tarefa impossível. Cada um é incentivado a comer o máximo que puder enquanto puder, sem pensar muito nas consequências.

Em certo nível o protagonista compartilha a cela com Imoguiri (Antonia San Juan), que acredita que “somente uma solidariedade espontânea pode trazer mudanças”. Ao alimentar-se apenas com o que é necessário, haveria comida para todos. Mas como fazer essa mensagem ser notada quando quem tem abundância quer mais, enquanto os níveis inferiores são obrigados a morrer de fome, enlouquecer ou tornar-se canibais?

Tanto a educação quanto o uso da violência não são suficientes para convencer todos os prisioneiros a agirem de forma justa, por isso o livro de Dom Quixote se faz tão importante para compreender o filme. Dom Quixote não simboliza apenas o conhecimento teórico, ele é o personagem literário que encarnou nos seus comportamentos os próprios valores.

Mas e o final?

“O Poço” é um filme de terror com muito mais do que alguns sustos e cenas gore. É bastante agonizante e o tempo parece parar em alguns pontos, como se você estivesse preso ali também, aguardando a narrativa chegar ao fim ou aproveitando os momentos mais tranquilos antes que tudo piore de vez. É exatamente sobre o final que eu gostaria de falar. Muitos vão assistir e se decepcionar, mas o final em aberto é o que torna o filme ainda mais relevante.

Ao tentar levar os alimentos até os andares inferiores, Goreng e Baharat (Emilio Buale) finalmente encontram a filha perdida de Miharu (Alexandra Masangkay), escondida no último andar da prisão. Ao invés de enviar a panacota intacta à Administração, como uma mensagem de solidariedade espontânea, Goreng entrega à criança faminta.

Ao compreender que a jovem poderia ser uma mensagem mais eficaz, ele se sacrifica para salvá-la. A prisão representa o que há de mais egoísta dentro do seu humano e ao salvar a filha de Miharu, ele entende que uma vida que está em risco pode ser salva se fizermos uma ação de solidariedade.

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“Nenhuma mudança é espontânea”, diz o protagonista, ou seja, é necessário passar por todos os níveis para criar compaixão para com os mais necessitados. Salvando a criança, Goreng cria uma ponta de esperança para que essa mudança ocorra. Essa é uma visão positiva e ideal, de que há recursos para todos mas os “de cima” precisam abrir mão dos excessos.

Ao chegar no fundo do Poço, ele reencontra Trimagasi, que mesmo depois de morto continua assombrando o protagonista, óbvio. Eles saem caminhando como bons amigos em direção a escuridão enquanto o velho diz que a missão foi cumprida. Diversas interpretações são possíveis.

O personagem pode ter morrido no processo e a última cena mostra o encontro com o amigo no outro mundo ou talvez mesmo salvando a menina O Poço corrompeu tanto Goreng que sair de lá já não era possível. Ou tudo não passou de um delírio após toda a fome e dificuldades enfrentadas enquanto descia, incluindo ferimentos. Talvez Goreng só precisasse esperar no último nível até o fim do mês e o confinamento finalmente acabasse. 

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Pessoalmente, não gosto dessas interpretações. Eu acredito que a chave para interpretar o final está na panacota. A menina que Goreng e Baharat encontram não passa de um delírio, já que não são admitidas crianças na prisão e ela estava saudável e limpa, mesmo estando no último nível da prisão. Ela representaria a esperança, e o fato dela comer a panacota seria a mensagem chegando ao destino. Porém, o que voltou ao nível 0 foi justamente a sobremesa.

Há uma cena anterior que mostra a indignação do chef ao notar a panacota intacta mas com um cabelo em cima. Então a mensagem que chegou foi a de que os prisioneiros não comeram a sobremesa por conta desse descuido. Todo o sacrifício foi em vão, quem está acima não vai entender seus esforços e tudo continua da mesma forma.

De qualquer forma, assim como “O Poço”, o filme possui diversas camadas de interpretação, cabe a cada um decidir até que nível é suportável chegar. É um filme recomendassímo, considerando o quanto é difícil encontrar um título interessante nas plataformas de streaming, vale a pena para quem tem estômago.

Crítica do filme Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica | Pouca magia em uma roadtrip

Difícil encontrar uma animação da Pixar que não emocione adultos e crianças, o estúdio já está tão consagrado que qualquer produção será muito bem recebida pelo público. O título da vez ganhou um título bem descritivo no Brasil, “Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica” (no original, Onward, algo como “adiante” ou “em frente”.)

Ao abordar temas complexos de uma forma simples e sincera, aliadas as animações incríveis e um estilo único, o estúdio acaba superando seus próprios limites a cada produção. Em “Dois Irmãos”, tudo isso se aplica novamente. O diretor Dan Scanlon, que já havia dirigido outro título da Pixar, “Universidade Monstro”, explora temas como luto, a ausência de uma figura paterna e as jornadas que levam as crianças a serem adultos.

Isso posto, talvez “Dois Irmãos” seja um filme simples demais para uma animação da Pixar, sem grandes surpresas na história, apesar de uma construção de mundo interessante, mas por incrível que parece o que falta é encanto e magia. 

O lúdico pelo mundano

Tudo começa com a apresentação de um mundo encantado com elfos, fadas, centauros, dragões e magos poderosos. Existem feitiços para os mais variados propósitos, muito semelhante ao universo de Harry Potter, e assim como no mundo bruxo a magia é complexa e difícil de ser dominada.

Por essa razão, com o progresso da civilização e os avanços tecnológicos sendo desenvolvidos, as criaturas deixam de lado a magia e passam a contar apenas com as comodidades da modernidade. Afinal de contas, é mais fácil apertar um botão e ter luz instantaneamente do que precisar contar com um feitiço complexo para atingir o mesmo propósito.

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É nesse contexto que vive Ian Lightfoot (Tom Holland), um jovem elfo tímido prestes a completar 16 anos, que sente a ausência do pai que nunca conheceu. Barley (Chris Pratt), seu irmão mais velho, compartilha o mesmo sentimento, mas se recusa a desanimar e deixar seu irmão sentir-se triste ou sozinho. Ele é fascinado pela magia do passado e os monumentos históricos, e é a partir de um presente deixado pelo pai que Ian e Barley embarcam numa viagem mágica.

Para complementar a jornada há ainda uma intimidante Mantícora (Octavia Spencer), que havia esquecido sua bravura para adaptar-se aos tempos modernos e a mãe dos jovens elfos  (Julia Louis-Dreyfus), que apesar de ser uma mãe solo bem comum, sabe que é muito forte, no sentido mais amplo da palavra.

Já jogou RPG?

O filme conta com um conhecimento prévio do público a cerca de criaturas místicas e fantasia medieval, sem perder tempo em apresentar as raças ou aprofundar-se em detalhes, mas nada que atrapalhe o entendimento da trama. Preocupa-se sim, e muito, em apresentar características que serão exploradas durante o desenrolar da narrativa, como por exemplo Ian com medo de dirigir em rodovias movimentadas.

As piadas são todas pautadas no conflito entre o mundano e o fantástico, como unicórnios agindo como guaxinins revirando o lixo e fadas em gangues de moto bastante agressivas. Fica claro que os roteiristas Jason Headley e Keith Bunin juntamente com Dan Scanlon se divertiram reimaginando os mitos para um mundo tecnológico.

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Houve ainda um cuidado em inserir despretensiosamente uma personagem LGBTQ+ em uma cena, tudo de forma bastante natural exatamente como deveria ser. Porém, o peso dos temas mais sérios acaba se sobressaindo ao humor, deixando a impressão que é tudo muito simples. Há um momento em que um dos personagens enfatiza que o melhor caminho nem sempre é o mais óbvio, o que é irônico considerando que o filme segue por uma linha extremamente segura, sem desvios ou surpresas. Faltou aquelas cenas que marcam a memória e encantam que os outros filmes Pixar sempre fizeram questão de carimbar.

Enfim, “Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica” promete entreter todas as idades, mas que talvez apenas confunda os mais novinhos que provavelmente vão preferir animações mais focadas na comédia. De qualquer forma, é inegável que a qualidade Pixar está registrada no longa, mas fica a esperança de que o estúdio encontre novamente o caminho da magia nas futuras produções.

Crítica do filme Bloodshot | Ação nanorobótica

Parece quase indispensável encontrar distrações nessa época tão sombria que estamos vivendo, seja por conta do distanciamento social ou seres completamente ineptos no poder. Com a impossibilidade do povo ir ao cinemas, as distribuidoras encontram estratégias alternativas para não perder totalmente o lucro das produções.

Por essa razão a Sony Pictures (entre diversas outras empresas) resolveu adiantar o lançamento digital de alguns filmes, e no caso de "Bloodshot", disponibilizou no canal oficial os 8 primeiros minutos do longa, para instigar todo mundo a assistir.

Parece quase indispensável encontrar distrações nessa época tão sombria que estamos vivendo, seja por conta do distanciamento social ou seres completamente ineptos no poder. Com a impossibilidade do povo ir ao cinemas, as distribuidoras encontram estratégias alternativas para não perder totalmente o lucro das produções.

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Para quem gosta de filmes de ação e do astro Vin Diesel, “Bloodshot” promete agradar. Porém, ninguém mais aguenta histórias de origem de super heróis, ainda mais um tão obscuro quanto esse. Por isso o diretor David S. F. Wilson teve a complicada tarefa de entregar um filme com potencial para iniciar uma franquia longe das enormes Marvel e DC Comics.

“Bloodshot” quase consegue renovar o gênero com muita ação e uma pitada de diversão, mas falha por conta do ator principal ser excelente com lutas e carros e péssimo quando a atuação exige mais do que três palavras.

Uma nova franquia de heróis?

Raymond Garrison, codinome Bloodshot, é um personagem criado em 1992 por Kevin VanHook, Bob Layton e Don Perlin. Foi publicado pelo selo Valiant Comics, que contava com diversos heróis alternativos, mas foi apenas em 2012, depois de contratar diversos membros da Marvel Comics, que a editora Valiant relançou seu universo de super heróis, dando um reboot total da história e atualizando todos os personagens. O resultado foi excelente, revitalizando os personagens para um público novo sem desagradar o público antigo e hoje em dia a Valiant possui o terceiro maior universo compartilhado dos quadrinhos.

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A adaptação para as telonas precisou “achatar” bastante a história para caber no formato proposto, mas o essencial está todo ali. Ray Garrison é um militar dedicado e excelente em seu trabalho, mas sua vida sofre uma reviravolta quando ele e sua esposa são sequestrados e mortos. Ray consegue ser ressuscitado pelo Dr. Emil Harting (Guy Pearce), que conseguiu essa façanha substituindo todo o sangue por nanitas, que são nanorobôs que agem em uma células sanguínea, só que nesse caso de uma forma muito criativa e exagerada.

Muito semelhante ao Wolverine, Ray não consegue se lembrar de nada do seu passado e  adquire a capacidade de se regenerar por completo, não importando o quando ele fique ferido, além de ter suas capacidades físicas ampliadas. Ele também ganha acesso a redes de computador, incluindo a internet, sem precisar de nenhum dispositivo além de seu cérebro,
o tipo de herói que todo adolescente quer ser.

Há ainda um grupo de super soldados: KT (Eiza González), Jimmy Dalton (Sam Heughan) e Tibbs (Alex Hernandez), cada um com uma história trágica e um membro robótico, que estão ali apenas para desempenhar um papel genérico e não se desenvolvem na trama. Tudo muito legal, até Ray lembrar-se que foi assassinado e viu sua esposa ser morta friamente. Ele decide vingar-se a qualquer custo, mas nem tudo é o que aparenta.

Uma nanotrama

Potencialmente tudo isso seria perfeito para um filme de ação desenfreada e muita computação gráfica, que são entregues até certo ponto. Pessoalmente, eu parei de considerar Bloodshot como um filme e comecei a ver como se fosse um videogame, pois a proposta seria perfeita para um jogo, se não fossem todos os aspectos genéricos da trama que qualquer pessoa que já assistiu filmes de ação ou de super-heróis reconhece sem esforço. Isso não é necessariamente ruim, o longa é até divertido, mas o que decepciona é o potencial desperdiçado.

Sem entrar em detalhes para não estragar a trama, o filme é repleto de clichês e uma mistura de diversas outras obras, o que não seria um problema se fosse bem utilizado. São poucas cenas de ação que se destacam, não existe desenvolvimento do personagem e a inexpressividade do astro Vin Diesel não ajuda a criar empatia com o personagem. Existe ainda uma tentativa de subtexto sobre liberdade e sobre cada um ter a escolha de quem quer ser, mas é preciso um esforço enorme para enxergar algo além dos nanitas espalhando-se e voltando em câmera lenta, que é o charme do filme (fica aqui meu parabéns à nanotecnologia). 

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A história coescrita por Jeff Wadlow e Eric Heisserer busca uma fórmula desnecessária. É quase como se eles soubessem que a franquia não tem futuro e só entregassem o básico, com medo de errar. Quando o longa encosta timidamente na comédia, subitamente volta a ser “séria”, por medo de ser mal interpretada. Nesse sentido, o grande destaque fica por conta de uma adição surpreendente de Wilfred Wigans (Lamorne Morris), que com pouquíssimo tempo  de tela, é um personagem lunático e genial, com falas malucas que fazem rir sem esforço.

Enfim, “Bloodshot” é um filme mediano quando poderia ser excelente. O final é totalmente anti climático e é até ironizado por um dos personagens, com pouca expectativa para o futuro. Se o universo Valiant continuar nos cinemas, será preciso um esforço bem maior (e talvez um ator no papel principal que seja mais expressivo) para decolar.

Crítica do filme Maria e João: O Conto das Bruxas | O Terror toma conta da Fantasia

Há muitas formas de contar uma mesma história e nem sempre os fatos serão os mesmos – ainda mais quando há uma subjetividade conforme a narrativa e o protagonismo. No caso de contos clássicos como “João e Maria”, você já conhece a versão tradicional, que é contado a todas as crianças, mas, quando a gente fala em audiovisual, sempre há espaço para uma pitada de inovação.

Agora, se a ideia é levar um conto desses a sério, temos de combinar que uma simples história de duas crianças perdidas na floresta não tem muita substância. Assim, para focar num público mais adulto, é preciso mais do que contar com ideias rasas e a inocência da plateia. Então, em vez de continuar com velhas ideias (ou apenas dar armas aos protagonistas), esta nova pegada visa um lado mais sombrio.

Primeiro, temos uma mudança drástica no tom, que deixa de lado a fantasia e passa a ser um retrato mais realista. Além disso, essa nova adaptação (se é que pode ser chamada assim, já que ela foge bastante do trivial) altera muito a sequência da história ao mudar o protagonismo. Aqui, Maria é a irmã mais velha e toma as decisões, de modo que isso justifica também a alteração no título do filme.

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O enredo segue uma premissa similar, mas há uma contextualização mais elaborada. Durante um período de escassez, Maria (Sophia Lillis) e seu irmão mais novo, João (Sammy Leakey), saem de casa para buscar comida e abrigo. No caminho, eles encontram cenas e situações inusitadas, inclusive se deparam com uma casa que pode ser sua salvação ou sua perdição.

E se você quer saber se o filme é bom, mas não quer spoilers ou detalhes da produção, o que posso dizer é que “Maria e João: O Conto das Bruxas” consegue manter um clima de tensão intenso, ao mesmo tempo em que impressiona visualmente. Não se trata de um filme muito assustador, então não espere demônios saltando na tela, porém ele é bem misterioso e leva a gente numa jornada perigosa pela imaginação.

Os mistérios da floresta

No todo, a história de “Maria e João” é muito distinta da habitual, mas há vários elementos que obviamente vão fazer alguma conexão com o imaginário do público que já tem uma noção de cenário e possíveis situações de apuros que os protagonistas enfrentarão nesta jornada na busca pela sobrevivência.

Poderíamos nos perguntar como a diferença de abordagem no roteiro poderia criar um impacto tão distinto, mas no fundo não se trata de uma história totalmente assustadora. O ponto é que essa nova adaptação abusa de detalhes simples, mas que são muito funcionais num projeto que visa passar uma sensação amedrontadora.

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Em vez de simplesmente “jogar” criaturas bizarras na tela, o script Rob Hayes opta por uma construção lenta, que usa muitos recursos de suspense para ampliar o medo infligido aos personagens, que, naturalmente, é repassado à plateia. Um barulho no meio da noite, um vulto entre as árvores, uma oportunidade fácil que cria dúvidas.

A cada instante, o roteiro do filme brinca com diferentes perigos deste mundo perigosos e assustador, ainda mais para dois protagonistas tão jovens. E, aos poucos, o filme vai construindo a sensação de perigo e transformando um ambiente que poderia ser alegre em algo insano e sem muito direcionamento. Tudo pode acontecer, ainda mais quando a sanidade está em jogo.

Uma floresta encantadoramente terrível

Para dar essa amplitude do terror inusitado, o filme dirigido por Oz Perkins (que já fez o filme de terror “O Último Capítulo” na Netflix) abusa de algumas cenas astutas. As câmeras posicionadas estrategicamente para deixar o ambiente mais imersivo, a fotografia pensada para usar silhuetas como gatilhos ao imaginário e os cenários amplamente hostis são convidativos para esse clima de tensão.

E para quem gosta de filmes do gênero, “Maria e João: O Conto das Bruxas” se revela um projeto muito charmoso, pois ele aposta na ambiguidade, ao mesmo tempo em que se mostra muito honesto em sua proposta. Às vezes, uma coisa que parece algo não é necessariamente o que você pensa, porém, o filme não faz muitas afirmações, deixando o público imaginar os possíveis – e terríveis – desdobramentos da história.

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Curiosamente, mesmo sendo mais voltada ao suspense e terror, esta é uma obra que não aposta no trivial, de modo que temos algumas cenas claramente criadas para deixar o filme mais bonito. Luzes impossíveis no meio da floresta, um colorido que cria um ambiente mais confortável para as trevas, efeitos competentes e uma trilha sonora eletrônica caprichada (que mais parece sair de Blade Runner) criam uma dualidade.

E é nesse mundo incrivelmente polido, que acompanhamos a história principal, que nem sempre é a prioridade. O roteiro trabalha muito com a atmosfera, mas não faz questão de dar muitos detalhes sobre o universo dessa nova versão do conto. Isso é obviamente um deslize e pode decepcionar os fãs mais fervorosos que tenham expectativas de ver um filme inusitado. Então, mantenha a calma.

A parte boa é que temos duas ótimas atrizes no jogo de gato e rato: Sophia Lillis e Alice Krige. Ótimas atuações, maquiagem e figurino de acordo com a ambientação, e diálogos que vão dando liberdade para as duas estrelas brilharem neste jogo perverso. Particularmente, eu achei muito bom o rumo proposto pelo roteirista, mas eu sei que nem todo o público enxergará a graça em meio à neblina de dúvidas.

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O que dá para concluir é que “Maria e João: O Conto das Bruxas” bebe da fonte de alguns filmes de terror recentes (como “A Bruxa”), não que ele tente plagiar, mas há uma inspiração evidente, bem como tenta criar sua identidade ao trazer referências artísticas de outras obras distintas (como “Mandy”). Um projeto audacioso, que talvez não seja o mais incrível que poderíamos imaginar, mas que agrada no todo e abre as portas para grandes sonhos de terror.

Crítica do filme Sonic - O Filme | É o raio azul para toda a família

O clássico jogo de videogame da SEGA sendo adaptado para as telonas deixou muitos fãs animados (principalmente furries), mas para o desgosto de muitos é um filme família. Porém, se você nunca se interessou pelo Raio Azul e não dá a mínima para quem é Robotnik, talvez “Sonic O Filme” não seja para você.

É preciso admitir que um ouriço azul que corre muito rápido não é necessariamente uma coisa fácil de adaptar para o cinema, principalmente interagindo com personagens humanos. A solução é rir na cara da lógica e deixar a seriedade de lado para o bem do andamento da trama.

Desnecessário dizer que o filme tem foco no público infantil, mas o apelo aos fãs dos jogos dos anos 90 está nos detalhes, tanto de personagens surpresa quanto easter-egg que dizem “se você é fã isso tá aqui o serviço”. E o mesmo cuidado que tiveram para refazer o personagem é visto nesses detalhes, que não adicionam tanto a trama mas que satisfazem os atentos.

Você não pode fugir de si mesmo, mudando de um lugar para outro

Importante lembrar que após a reação negativa ao primeiro design do Sonic e todo o trabalho para refazer e deixar o boneco menos feio e odioso, é impossível negar que a Paramount quer muito agradar os fãs e não deixar ninguém na mão. Então quem reclamou é obrigado a ver no cinema, sim!

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Tudo começa com o fofíssimo Sonic Bebê em sua terra natal sendo obrigado a fugir para o planeta Terra. Sendo basicamente um alienígena muito veloz, ele cresceu escondido em uma pequena cidade no interior de Montana, chamada Green Hills. Apesar do nome semelhante, não é exatamente uma Green Hill Zone, que os fãs vão lembrar de cara, a primeira fase do jogo de 1991, mas é uma das muitas homenagens ao jogo clássico que marcou uma geração. 

Isolado no nosso mundo, Sonic não tem ninguém para conversar além de si (e o público, e tudo bem porque a quarta parede tá aí para ser quebrada mesmo). A dublagem do ouriço fica por conta do comediante Ben Schwartz, que parece que tá sempre acelerado, então combina muito  com as características do nosso protagonista, que por sinal é claramente meio louco devido o isolamento.

Por que a pressa?

Contra todas as probabilidades, o longa é meio arrastado até o protagonista ser forçado a revelar-se para seu único “amigo” Tom Wachowski (James Marsden), um policial que está muito entediado por não poder salvar vidas na cidade pacata em que mora. Entra em cena também o esperado Dr. Robotnik, interpretado pelo sensacional e insano Jim Carrey.

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Jim Carrey é bastante caricato, exatamente como o personagem precisa ser. E a partir desse ponto o filme se aproxima muito aos jogos, com Robotnik enviando drones e máquinas para capturar Sonic, enquanto ele corre loucamente e destrói todas elas. Mas como isso não seria o bastante, há também todo um subtexto sobre a amizade e aproveitar a vida, e parte do filme se caracteriza como uma road trip com dois amigos. Filme família!

A direção fica por conta de Jeff Fowler e o roteiro simples, porém eficaz, é assinado por Patrick Casey e Josh Miller. Buscando acertar no que já deu certo, vemos muitas cenas que são praticamente remakes de outros filmes.  Impossível não lembrar da marcante cena de Mercúrio em X-Men, quando todos congelam e o corredor altera o ambiente como bem entende. Sonic faz a mesma coisa, mas com uma música menos empolgante e com ações bem menos criativas. Esse é um dos exemplos, a sensação que fica é a de que tentaram fazer graça com cenas já consolidadas. Não é ruim, só não é criativo. E tudo bem, é bastante divertido ainda.

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O que realmente empolga são as adições de personagens surpresa, mais uma contribuição para os fãs falarem “agora vai!”. As cenas pós-crédito são tão inseridas no contexto dos jogos que a possibilidade de uma continuação para essa adaptação empolga mais do que qualquer redesign. E tomara que outros jogos da SEGA sejam feitos com o mesmo cuidado que Sonic recebeu, pois existe muito potencial e uma base de fãs sedentos esperando por isso.

Crítica do filme O Preço da Verdade - Dark Waters | Você precisa ver este filme!

Em tempos que notícias são propagadas via WhatsApp e muitos leem apenas manchetes nas redes sociais, todo esforço para tentar tirar as pessoas da alienação é mais do que válido. Assim, só por ser uma produção que busca retratar uma história de importância global, o filme “O Preço da Verdade – Dark Waters” já merece sua atenção.

E mesmo indivíduos mais antenados podem não conseguir acompanhar todas as notícias, ainda mais quando tratamos de casos fora do Brasil e que foram foco de atenção há mais de uma década. Assim, há chances de que você não faça ideia de quem seja Rob Bilott, mas você provavelmente não terá a mesma visão de mundo após saber da história deste homem.

Em “O Preço da Verdade”, acompanhamos a história do advogado Rob Bilott (Mark Ruffalo), que acaba de virar sócio em um prestigiado escritório de advocacia em Cincinnati, fruto de seu bom trabalho em defender grandes empresas do setor químico. Contudo, ele se vê em conflito após ser contatado por agricultores que acreditam que uma fábrica da DuPont está despejando lixo tóxico num aterro e matando seus animais e campos.

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Assim, Bilott, com a ajuda de seu parceiro na empresa, Tom Terp (Tim Robbins), ele registra uma queixa que marca o início de uma luta épica de 15 anos (sim, você leu certo). Uma disputa judicial que exige não apenas de sua saúde mental, mas que também testa seu relacionamento com a esposa, Sarah (Anne Hathaway), e também sua reputação e sustento.

Importante notar que, apesar da importância biográfica, o mais curioso aqui é a revelação de fatos históricos que podem mostrar a você, caro leitor, o quanto somos reféns das indústrias. Desta forma, “O Preço da Verdade – Dark Waters” chega não apenas como entretenimento, mas como crítica e alerta a todos. É uma história que choca mesmo e, certamente, uma obra que merece sua atenção, então veja no cinema!

Instigante do começo ao fim

Confesso que, particularmente, eu tenho uma certa preguiça de filmes divididos em capítulos, mas este é um recurso necessário em alguns casos, ainda mais numa história como esta que pretende contar fatos ao longo de quase 15 anos. É claro que esse tipo de narrativa pode demorar a engrenar, pois algumas peças só vão se encaixar após um bom tempo de roteiro.

No entanto, mesmo sendo um estilo cansativo pelas tantas informações mostradas durante uma sequência de fatos e outra, o script de Dark Waters foi muito bem desenvolvido, de forma que o filme não tenta prolongar uma história já bastante complexa. Focando nos aspectos mais importantes, o filme vai direto ao ponto e conta os principais episódios desta saga judicial.

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E apesar de um começo vagaroso, até porque é necessário para introduzir personagens e os aspectos básicos da trama, após alguns trechos da história principal, o filme engata num ritmo, que nos faz querer embarcar junto ao advogado Rob Bilott nesta peregrinação contra uma corporação multibilionária, afinal não se trata de uma causa ganha, para alguns seria algo até impossível e inimaginável. E como é bom assistir a uma história de pura coragem.

O filme mostra uma progressão bem coerente do protagonista, bem como do caso da DuPont, o que nos deixa sedentos a cada minuto de película por mais fatos e reviravoltas. Entretanto, isso não significa que o filme cria um herói ou poupa personagens, pois as lacunas de tempo são bem marcantes na trama através de uma série de fatores que deixa a história da vida pessoal do protagonista também muito intrigante.

Para quem soube pouco através de notícias ou sequer sabe da existência deste caso, certamente o filme se prova ainda mais interessante, pois cada novidade na história é uma surpresa, não de uma mera ficção, mas de um retrato da realidade que mostra o impacto do caso num âmbito global.

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E é curioso apontar que “O Preço da Verdade – Dark Waters” é uma odisseia judicial, porém não se torna algo chato ou cansativo, de modo que o roteiro é tão instigante quanto o de filmes da mesma vertente como “Spotligtht – Segredos Revelados”. Nesse ponto, parabéns aos roteiristas Matthew Michael Carnahan (de “Crime Sem Saída” e “Horizonte Profundo”) e Mario Correa que engajaram bem na história.

Convincente nos pormenores

Méritos à parte do roteiro, é válido também comentar o excelente resultado do filme proveniente de um elenco engajado. Primeiro, temos Mark Ruffalo, que além de protagonista foi produtor do longa-metragem. Não é fácil tornar um papel de advogado algo atraente para o público e a missão fica ainda mais difícil quando falamos de um personagem que deve ser retratado em tantos momentos distintos.

Mesmo com vários desafios, Ruffalo parece ter tomado a frente do projeto para levar essa mensagem pessoalmente ao público. Seu personagem sai de uma zona de conforto, passa por várias situações desafiadoras e cria empatia para uma causa que poucos teriam coragem de assumir. Uma atuação convincente e envolvente que nos leva a criar uma sintonia com o protagonista e a ter medo até da própria sombra.

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Garantindo um universo ainda mais coerente para este retrato, temos ótimas encenações de Anne Hathaway e Tim Robbins, ambos com tempo considerável de aparição e que ajudam a dar veracidade ao caso. O filme tem êxito em criar personagens bem humanos, o que ressalta a coragem do verdadeiro Rob Bilott. Entretanto, há algumas surpresas durante o filme e também ao fim que vão deixar você ainda mais intrigado com os detalhes observados pela produção. Tudo leva a uma série de fatores bem pesados!

E falando em produção, vale mencionar os cuidados do filme na montagem de cenários e na construção dos personagens. Num filme em que é preciso retratar épocas tão distintas, temos um trabalho muito competente que vai desde figurino, até cenários internos e carros nas ruas que permitem essa distinção bem clara. Da mesma forma, a maquiagem dos personagens principais ajuda a perceber o cansaço do caso e o amadurecimento dos envolvidos.

Por fim, mas não menos importante, uma coisa que sempre ajuda em filmes históricos é a questão da cinematografia, edição e tratamento de cor, algo também desafiador para o time técnico, mas que parece ter tirado de letra na hora de criar esse ambiente nostálgico, mas também ameaçador da história. Enfim, seja pelo retrato de uma história importante ou pela crítica a um tema muito pertinente em tempos de governos irresponsáveis, “O Preço da Verdade – Dark Waters” é um filme necessário e importantíssimo para todos!